Bottom line
O diagnóstico tardio do câncer do colo uterino é uma realidade que apresenta limitações importantes para o adequado tratamento oncológico: anemia (por sangramentos), disfunção renal e dor pélvica. A profilaxia dessas complicações e seu controle efetivo é indispensável para obter melhores resultados terapêuticos. Dados sugerem a necessidade de medidas de prevenção da disfunção renal, manutenção de níveis de hemoglobina apropriados e intervenção quando houver PS > 2. Para a administração do padrão de tratamento, baseado em cisplatina concomitante à radioterapia, é importante que as pacientes tenham função renal minimamente adequada, sendo a cisplatina contraindicada em pacientes com clearance de creatinina <30mL/min.
Maria Del Pilar Estevez Diz é oncologista clínica do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – ICESP
Por Maria Del Pilar Estevez Diz1 e Gustavo Duarte Ramos Matos2
Oncologista Clínica, Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – ICESP
Residente de Oncologia Clínica do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – ICESP
Resumo
Responsável por mais de 300 mil mortes anualmente, o câncer do colo do útero permanece como grave problema mundial de saúde pública e é a quarta neoplasia mais diagnosticada em mulheres no mundo inteiro, principalmente em países com baixo e médio índice de desenvolvimento humano. No Brasil, é o primeiro câncer em incidência na região Norte, o segundo no Nordeste e o terceiro mais prevalente na população feminina, em termos absolutos. Estimativas do INCA indicam 16.370 novos casos por ano no biênio 2018-2019.
O tratamento padrão para estádios iniciais (IB2 a IVA) consiste na radioterapia e quimioterapia concomitante com cisplatina 40mg/m²/semana, mas a doença avançada frequentemente apresenta complicações que contraindicam a administração do tratamento oncológico mais adequado. Atualmente, em cerca de 77% das pacientes com carcinoma espinocelular e 67% das pacientes com adenocarcinoma, o diagnóstico é realizado em estádios avançados (FIGO≥II), quando frequentemente já existem fatores claramente associados a menor sobrevida (anemia, obstrução de vias urinárias e dor). A profilaxia dessas complicações e seu tratamento efetivo é indispensável para obter melhores resultados terapêuticos
Palavras-chave: câncer do colo uterino, profilaxia, complicações, tratamento oncológico, performance status
O câncer de colo uterino é uma condição bastante prevalente. Segundo o GLOBOCAN 2018, estimam-se 570.000 novos casos por ano e 311.000 mortes pela doença, principalmente nos países com índice de desenvolvimento humano baixo e médio, sendo o 4º câncer mais diagnosticado em mulheres e a 4ª causa mais prevalente de mortalidade por câncer.1 Em 2018 observamos um aumento no número absoluto de casos novos e no número de mortes, estas correspondendo a 7,5% do total de mortes por câncer. No Brasil, segundo dados do INCA, estimam-se 16.370 novos casos por ano no biênio 2018-2019, com um risco estimado de 15,43 casos a cada 100.000 habitantes, sendo o mais incidente na região Norte, ocupando a segunda posição nas regiões Nordeste e Centro-Oeste e a terceira posição quando consideramos toda a população brasileira.2
Estudos mostraram que em cerca de 77% das pacientes com carcinoma espinocelular e 67% das pacientes com adenocarcinoma, o diagnóstico é realizado em estádios avançados (FIGO≥II).3 O tratamento padrão para a maioria das pacientes (IB2 a IVA) consiste na radioterapia e quimioterapia concomitante com cisplatina 40mg/m²/semana, com redução do risco de morte por câncer de colo uterino de 30 a 50% nesses estádios avançados.4 Entretanto, a doença avançada pode se apresentar com importantes fatores limitantes para o tratamento: anemia (por sangramentos), disfunção renal e dor pélvica. Essas complicações da doença, além de gerarem a perda de performance, podem vir a ser contraindicações para a administração do tratamento oncológico mais adequado.
Já é conhecido que a disfunção renal piora o prognóstico de pacientes com neoplasias ativas. No cenário das pacientes com carcinoma de colo uterino, a disfunção renal costuma ser decorrente de obstrução urinária, que pode estar presente ao diagnóstico em tumores avançados ou em decorrência de recidiva ou progressão de doença. Para a administração de cisplatina concomitante à radioterapia, é importante que as pacientes tenham função renal minimamente adequada, sendo a cisplatina habitualmente contraindicada em pacientes com clearance de creatinina <30mL/min.
Uma coorte de 279 pacientes da Mayo Clinic mostrou que 23% das pacientes receberam o diagnóstico de hidronefrose em algum momento do curso da doença, e este achado está associado a pior sobrevida.5 As evidências relativas à desobstrução urinária são principalmente provenientes de estudos observacionais. Um estudo filipino não observou diferença significativa de qualidade de vida entre pacientes derivadas e não derivadas, com benefício modesto em sobrevida.6 Para tentar avaliar complicações renais e sobrevida após a realização de nefrostomia percutânea, estudo transversal avaliou pacientes brasileiras com obstrução urinária e necessidade transitória de tratamento dialítico. Nessa avaliação, a única variável associada à sobrevida maior foi hemoglobina >8,7g/dL.7 Uma avaliação prospectiva, também brasileira, da realização da derivação urinária independentemente do diagnóstico oncológico mostrou que fatores associados a menor sobrevida incluíam performance status (PS) ECOG≥2 e um número elevado de eventos associados à progressão de doença.8 O conjunto desses resultados sugere que provavelmente há pacientes que se não beneficiam da indicação do procedimento, mas aponta para a necessidade de medidas de prevenção da disfunção renal, manutenção de níveis de hemoglobina apropriados e intervenção quando houver um PS > 2.
O controle da anemia é extremamente importante pelo fato que a própria presença da anemia é um fator de mau prognóstico, além de gerar perda de PS. Em pacientes em estádios iniciais, um estudo coreano mostrou que há na presença de anemia redução significante da sobrevida global em 5 anos de pacientes de estádios iniciais submetidas a tratamento cirúrgico de 97,8% para 90,9% (p=0,002).9 Assim sendo, o controle de eventuais sangramentos, com a queda níveis de hemoglobina é importante no manejo dessas pacientes, com o objetivo também de melhorar as condições para o tratamento radioterápico e a quimioterapia concomitante. Há a preocupação de utilizar esquemas de irradiação hemostática para preservar a tolerância do tecido normal para a realização do tratamento definitivo em doenças curáveis. Foi publicada uma revisão sistemática pela Cochrane que não observou estudos clínicos randomizados no intervalo de 1980 a 2014 que mostrassem evidências que comparassem medidas como ácido tranexâmico, tampões vaginais, técnicas de radiologia intervencionista com a radioterapia para controle de sangramento vaginal. Ainda assim, há estudos de braço único para cada uma dessas técnicas de controle de hemostasia e podem ser utilizadas segundo a experiência de cada local.10
As pacientes com doença avançada frequentemente apresentam quadros de dor importante, geralmente de caráter misto, com forte componente neuropático. O controle adequado do quadro de dor com opiáceos e drogas adjuvantes (anticonvulsivantes ou antidepressivos) é essencial para a manutenção da qualidade de vida dessas pacientes e a analgesia deve ser instituída prontamente.
Em resumo, em países em desenvolvimento, como o Brasil, o diagnóstico de câncer de colo de útero ainda é tardio na maioria dos casos, com maior incidência de anemia, obstrução de vias urinárias e dor. A profilaxia dessas complicações e o tratamento das mesmas de maneira efetiva são necessários para que se obtenham melhores resultados terapêuticos.
Referências
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