Os mecanismos de resistência da célula tumoral à terapia anti-HER2 são tema do artigo exclusivo do oncologista Márcio Debiasi e colegas. Debiasi (foto) é Diretor Científico do LACOG (Latin American Cooperative Oncology Group), preceptor do serviço de oncologia do Hospital São Lucas da PUCRS e oncologista do Hospital do Câncer Mãe de Deus.
Introdução
*Por Márcio Debiasi, Paulo Nunes Filho, Carolina Albuquerque e Valeria Sgnaolin
O câncer de mama é a neoplasia maligna mais frequente nas mulheres em todo o mundo, excluindo-se tumores de pele não-melanoma. Representa a principal causa de morte por câncer nos países em desenvolvimento e a segunda principal causa nos países desenvolvidos ( M. Ervik F, 2016). Os dados do último GLOBOCAN, de 2012, contabilizaram 1,68 milhão de novos diagnósticos e 522.000 óbitos por ano devido ao câncer de mama. No Brasil, é o câncer mais frequente em mulheres (com exceção da região Norte) com 57.960 novos casos estimados para 2016 em todo o país (INCA).
Cerca de 20% dos carcinomas de mama apresentam-se com hiperexpressão ou amplificação do gene HER2. Descoberto na década de 1980 (King CR,1985), esse oncogene codifica uma proteína transmembrana com atividade tirosina quinase intracelular, sendo crítica na transdução de sinais extracelulares para crescimento epitelial, diferenciação e, possivelmente, angiogênese. A identificação de superexpressão de HER2 ao nível genético, transcripcional ou proteico está associada a um pior prognóstico nas pacientes com câncer de mama (Ross JS,2009), (Pegram MD,1997).
Em 2001, foi publicado o primeiro ensaio clínico randomizado demonstrando que a associação de trastuzumabe (um anticorpo monoclonal anti-HER2) à quimioterapia de primeira linha paliativa trazia benefício em termos de sobrevida global em pacientes com câncer de mama metastático HER2-positivo ( Slamon DJ,2001). Em 2005, foram publicados os primeiros dados demonstrando a eficácia da associação de trastuzumabe com quimioterapia adjuvante em aumentar as chances de cura das pacientes (Perez EA,2014;)(Piccart-Gebhart MJ, 2005)(Untch M,2011)(Gianni L, 2010).
Todavia, a resistência ao tratamento anti-HER2 ainda é uma preocupação na prática clínica. Pacientes tratadas no cenário adjuvante apresentam 3-5% de risco de recidiva anual nos primeiros 5 anos, enquanto na doença metastática, a progressão é a regra.
Com o intuito de se sobrepujar a resistência, novas drogas para o tratamento da doença HER2-positiva foram desenvolvidas, tais como pertuzumab, TDM-1, lapatinibe e neratinibe. A efetividade do duplo-bloqueio já foi demonstrada tanto no cenário paliativo como no cenário neoadjuvante. A presente revisão tem por objetivo descrever os mecanismos de resistência da célula tumoral à terapia anti-HER2.
Trastuzumab: mecanismo de ação
A família HER (Human EpidermalGrowthFactor Receptor) é composta por 4 receptores transmembrana com domínio tirosina-quinase intracelular: HER1 (mais comumente referido como EGFR), HER2, HER3 e HER4. A cascata intracelular que determina o comportamento biológico agressivo desses tumores é disparada quando ocorre a dimerização dos receptores HER na membrana celular. O processo de dimerização é iniciado pela presença de fatores de crescimento (ligantes) extracelulares que se ligam aos receptores EGFR, HER3 ou HER4. O papel central do receptor HER2 é definido pelo fato de ele ser o parceiro preferencial de heterodimerização dos demais receptores da família e por ele ser o único capaz de homodimerização independente de ligantes externos (GOLDENBERG, 1999; BASELGA, 2001; LEYLAND-JONES, 2002).
O trastuzumab é um anticorpo monoclonal IgG1 humanizado que se liga seletivamente e com elevada afinidade ao subdomínio IV do domínio extracelular do HER2. (GOLDENBERG, 1999; SLAMON, 2001; HARRISON, 2015; ZAMBRANO, 2016).
A interação do trastuzumabe com o domínio extracelular do HER-2 resulta em um efeito citostático inibidor do crescimento de células que superexpressam HER-2 através de vários mecanismos ainda não completamente definidos, dentre os quais se destacam: inibição da clivagem do domínio extracelular do HER-2, inibição da homodimerização independente de ligante do HER-2, diminuição da associação do HER-2 com os seus parceiros heterodiméricos HER-3 e/ou HER-4, inibição das vias de transdução do sinal, parada do ciclo celular, indução de apoptose, inibição da angiogênese e interferência no reparo do DNA (PEGRAM, 1999; MOLINA, 2001; BASELGA, 2001; HORLOCK, 2009; ARTEAGA, 2012). Outros mecanismos de ação que têm sido propostos incluem a downregulation do HER-2 através da endocitose e internalização do receptor, com consequente aumento da sua degradação intracelular, e mecanismos imunológicos, tais como a eliminação de células T CD4 CD25 tumor-específicas, o que resulta em uma melhor resposta imunológica contra o tumor (MOHSIN, 2005; SPECTOR, 2009; ARTEAGA, 2012). Adicionalmente, o trastuzumabe é um mediador potente da citotoxicidade mediada por anticorpos (ADCC – antibody-dependentcell-mediatedcytotoxicity) (BASELGA, 2001; HARRISON, 2015).
Quando analisado o efeito in vivo do trastuzumabe, este parece induzir a apoptose das células do tumor, enquanto in vitro predominam os efeitos antiproliferativos (HORLOCK, 2009; ARTEAGA, 2012). Este efeito inibidor do crescimento é específico para células com superexpressão de HER-2 e não ocorre com as células que expressam quantidades normais desta proteína (ARTEAGA, 2012).
Resistência ao trastuzumab
A despeito da indubitável eficácia do trastuzumabe no tratamento dos tumores HER2-positivos nos contextos neoadjuvante, adjuvante e metastático, muitos tumores exibem resistência intrínseca ou adquirida à terapia-alvo anti-HER2. A resistência intrínseca é caracterizada pela falta de resposta ao tratamento alvo. Já a resistência secundária é aquela que se apresenta durante ou até 6-12 meses após o tratamento com o uso do tratamento.
No contexto metastático, mesmo com o uso de trastuzumabe, aproximadamente 7% das pacientes apresentam resistência intrínseca, ou seja, apresentam progressão de doença na primeira avaliação (Andersson M 2011, Swain SM 2015). Além disso, a resistência adquirida à terapia-alvo com trastuzumabe é evento que acaba por acontecer na quase totalidade das mulheres com doença avançada, mesmo naquelas que inicialmente respondem ao tratamento. Para estas pacientes, a mediana da sobrevida livre de progressão encontra-se atualmente em 12 meses (Swin, 2014).
No cenário adjuvante, existem inúmeros ensaios clínicos randomizados que comprovam de forma contundente a eficácia dos inibidores da via HER2 em aumentar a chance de cura das pacientes, apresentando redução relativa do rico de morte de 34% (HR 0,66; IC95% 0,57-0,77; p<0,01). Apesar disso, em torno de 20% das pacientes que utilizam trastuzumabe nesta situação clínica acabam por recidivar (Smith 2007). Já no cenário neoadjuvante, a resistência ao bloqueio simples da via HER2 fica evidenciada quando notamos que aproximadamente 50% das pacientes não atingem resposta patológica completa quando submetidas a esta estratégia (Cortazar P, 2012; Petrelli F, 2011; Gianni L 2013).
Uma variedade de diferentes mecanismos de resistência ao trastuzumabe já foram propostos, tais como down-regulation de receptores HER2 com uso de trastuzumabe, mutação no gene PIK3CA, down-regulação do receptor de ciclina P27(kip1), aumento do fator de crescimento insulin-like 1, alterações no receptores MET, alterações na expressão de E-caderina, entre outros(Austin, 2004; Bachman, 2004; Bedolis, 2004; Diermeier, 2005; Gallardo, 2012; Lu, 2001; Samuels, 2004; Scaltriti, 2011; Shattuck, 2008; Vu, 2012; Yamauchi, 2011). A descrição pormenorizada dos mecanismos moleculares destas alterações vai além do escopo desta revisão e, portanto, não será aqui abordada.
Vencendo a resistência ao trastuzumab
Existem atualmente três drogas disponíveis no mercado para sobrepujar a resistência ao trastuzumab em diferentes cenários clínicos: pertuzumab, T-DM1 e lapatinib.
Pertuzumab
Pertuzumab é um anticorpo monoclonal recombinante humanizado cujo alvo é o domínio de dimerização do HER2 (subdomínio II). Ao bloquear a dimerização do receptor, inibe a sinalização intracelular e induz apoptose. Atua em um epítopo diferente do trastuzumab, provocando uma inibição mais completa da via HER2 quando usados em associação ( Baselga J, 2012).
No cenário metastático, está aprovado para pacientes virgens de tratamento com drogas anti-HER2 ou que progrediram pelo menos 12 meses após o fim da adjuvância com trastuzumab. O estudo de fase III CLEOPATRA ( Baselga J, 2012)comparou a adição de pertuzumabe ou placebo ao esquema padrão de primeira linha paliativa de docetaxel mais trastuzumabe. O duplo bloqueio teve maior taxa de resposta objetiva (80% versus 69%), maior sobrevida livre de progressão (mediana de 19 versus 12 meses, HR 0,62; IC95% 0,51-0,75) e sobrevida global (mediana de 56,5 versus 40,8 meses, HR 0,68; IC95% 0,56-0,84).
Também na neoadjuvância, a associação de trastuzumabe e pertuzumabe à quimioterapia também se mostrou eficaz. Os estudos NeoSPHERE e TRYPHAENA(Gianni L,2012; Schneeweiss A, 2013)mostraram taxas de resposta patológica completa (pCR) de aproximadamente 50% na associação do duplo bloqueio combinado com quimioterapia. Publicada em junho de 2016, a análise com 5 anos de seguimento do estudo NeoSphere (Gianni L,2016)evidenciou maior taxa de uma tendência no aumento da sobrevida livre de doença em 5 anos (84% versus 81%; HR 0,60; IC95% 0,28-1,27) com o uso do duplo-bloqueio. Na adjuvância, o benefício da estratégia ainda não é conhecido, sendo aguardados os resultados do estudo de fase III APHINITY.
T-DM1
Ado-trastuzumab emtansina é um conjugado anticorpo-fármaco composto de trastuzumab, um ligante tioéter e um inibidor de microtúbulo (DM1) ( Isakoff SJ,2011). Seu uso mais bem corroborado é em pacientes que progridem em vigência de trastuzumab ou dentro de 6 meses após o término da adjuvância. No estudo EMILIA ( Verma S,2012), comparou-se T-DM1 com a combinação de capecitabina e lapatinib. A análise com seguimento de 19 meses mostrou aumento na sobrevida livre de progressão (10 versus 6 meses), sobrevida global (31 versus 25 meses) e taxa de resposta (44% versus 31%), com menor incidência de eventos adversos.
Ademais, a medicação também é indicada após a progressão a duas linhas de terapia anti-HER2, baseado no ensaio TH3RESA ( Krop IE,2014). Quando comparado à quimioterapia à escolha do investigador, T-DM1 mostrou melhora em sobrevida livre de progressão e global.
Cabe lembrar que em primeira linha, com pacientes previamente não tratados, embora seja ativo, a medicação não foi superior à combinação de trastuzumab com taxano (Ellis PA,2015).
Lapatinib
A droga lapatinib é um inibidor do domínio intracelular tirosina-quinase dos receptores EGFR e HER2. Em primeira linha para doença metastática, a combinação de lapatinib com quimioterapia é superior à quimioterapia isolada ( Di Leo A,2008)porém é inferior à terapia baseada em trastuzumab (Gelmon KA,2016). Já em segunda ou terceira linha, existe corpo de evidência maior na associação com capecitabina ou trastuzumab, inclusive com aumento de sobrevida global (Cameron D,2010)( Blackwell KL,2012). Este esquema, porém, foi superado em segunda linha pelo TDM1, como já descrito anteriormente.
No cenário adjuvante e neoadjuvante, as evidências atuais não permitem o uso da medicação, uma vez que os ensaios clínicos publicados até o momento evidenciam aumento nas taxas de resposta patológica completa mas falharam em identificar benefício em termos de sobrevida global para esses pacientes às custas de piora do perfil de toxicidade, onde destaca-se a dirréia (Piccart-Gebhart M,2016)(Goss PE, 2013)(Untch M,2012)( Baselga J,2012).
Conclusões
Com o advento da medicina de precisão, a oncologia caminha para um modelo de desenvolvimento de novas drogas baseado na pesquisa translacional. O tratamento dos tumores HER2-positivos foi revolucionado nas últimas duas décadas com inegáveis benefícios aferidos em termos de desfechos primordiais, tais como sobrevida global e qualidade de vida. Apenas aprofundando nosso conhecimento acerca dos mecanismos de resistência às terapias anti-HER2 é que poderemos identificar novos alvos terapêuticos a fim de mantermos a evolução desses tratamentos e atingirmos o objetivo central da pesquisa biomédica na área da oncologia: a cura do câncer.
* Autores: Paulo Nunes Filho (1); Carolina Albuquerque (1); Valeria Sgnaolin (1); e Márcio Debiasi (2)(3)(4)
1 - Médico residente do serviço de oncologia do Hospital São Lucas da PUCRS
2 - Médico preceptor do serviço de oncologia do Hospital São Lucas da PUCRS
3 - Médico Oncologista do Hospital do Câncer Mãe de Deus
4 - Diretor Científico do LACOG (Latin American Cooperative Oncology Group)
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