Com uma carreira dedicada à pesquisa, ensino e assistência, o oncologista Gilberto Castro (foto), responsável pelo Grupo de Oncologia torácica e Cabeça e Pescoço do ICESP e orientador do Programa de Pós-Graduação em Oncologia da Faculdade de Medicina da USP, quer reforçar a tônica na prevenção do câncer. O especialista acaba de assumir a presidência do Grupo Brasileiro de Oncologia Torácica (GBOT) e quer aumentar a inserção da pesquisa brasileira no cenário internacional.
A sua atuação é principalmente no câncer de cabeça e pescoço e na oncologia torácica, áreas desafiadoras dentro da oncologia. O que motivou essa escolha?
A melhor resposta para essa questão vem das minhas características pessoais. Primeiro, sou apaixonado pelo que faço. Quando me oferecem algum problema, procuro encarar como uma oportunidade para vencer um desafio. Para entender como decidi atuar em cabeça e pescoço, vamos remontar ao começo dos anos 2000, quando eu tinha terminado a residência. Fiz concurso para médico assistente do serviço de oncologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, que estava começando. O serviço foi criado em 1997, entrei em 1998. Havia um interesse crescente no câncer de cabeça e pescoço, estimulado pelas pesquisas em diferenciação celular da professora Miriam Honda Federico, que era a chefe do serviço. Ela fazia os estudos no laboratório e nós passamos a acompanhar os pacientes na clínica. Aqui, eu tenho que mencionar o forte apoio que tive dos cirurgiões e do departamento de cirurgia de cabeça e pescoço do HC, com os quais mantenho excelente relacionamento até hoje. Sempre me perguntam porque escolhi estar com um paciente tão grave. A doença acomete vias aerodigestivas superiores associadas a funções fisiológicas essenciais, como respiração e deglutição. Quando o tumor evolui, afeta áreas associadas aos prazeres da vida, como beber, comer, conversar ou dar um beijo. E em terceiro lugar, afeta a própria identidade do indivíduo, que é face. O paciente de cabeça e pescoço não se apresenta simplesmente com um tumor que precisa ser tratado, mas com uma série de comorbidades e complexidades que também precisam ser vistas. É um paciente muito doente, ainda exposto aos principais fatores de risco – tabagismo, etilismo e exposição ao papilomavírus. Do ponto de vista socioeconômico e educacional, é um paciente muito frágil, que acaba sendo o retrato da população brasileira. Com tudo isso, são indivíduos que convivem com profundo sofrimento psicológico. O número de suicídio entre esses pacientes é enorme. Mesmo quando tratados e curados do câncer, eles enfrentam sequelas, a qualidade de vida após o tratamento é muito ruim. O paciente fica com xerostomia e tem dificuldade de engolir, parcela importante enfrenta a caquexia, sem falar de fibrose cervical e outras comorbidades frequentes. Nos tumores de cabeça e pescoço, a doença é muito maior do que o câncer. Então, eu estava diante desse cenário, com um serviço começando, o apoio de um laboratório de pesquisa e o entusiasmo da minha juventude. Fazer cabeça e pescoço foi uma consequência natural. Resolvi pegar esse problema tão grave e transformar em uma oportunidade, buscar soluções. Até hoje dedico boa parte do meu tempo à pesquisa, ensino e assistência em câncer de cabeça e pescoço. Um dos mentores da minha carreira, Ahmadi Awada, em Bruxelas, com quem mantenho contato até hoje, costuma dizer que eu cuido de um nicho.
E o ingresso na oncologia torácica?
Foi em 2008, com a criação do ICESP, quando todo o serviço de oncologia do HC foi transferido para o Instituto do Câncer. Nesse período, me ofereceram também a oncologia torácica, com a ideia de segmentar o modelo de assistência. De novo resolvi aceitar o desafio, porque o paciente de câncer de pulmão tem muito em comum com o doente de cabeça e pescoço, a começar do tabagismo como fator de risco. Foi um pedido feito pelo Paulo Hoff, para que eu passasse a cuidar também de câncer de pulmão, e hoje avalio que isso só veio a somar na minha carreira.Então, em meados dos anos 2000 passei a atuar com mais ênfase na oncologia torácica. A interação com os pneumologistas, com os cirurgiões torácicos, patologistas, equipes de reabilitação, tudo isso foi essencial. Nós conseguimos organizar no ICESP um grupo dedicado ao câncer de cabeça e pescoço e à oncologia torácica, que tem conduzido pesquisa, ensino e assistência nessas áreas.
Como foi a criação do Grupo Brasileiro de Câncer de Cabeça e Pescoço?
É uma felicidade muito grande ter participado da criação desse Grupo. Foi há dois anos, quando conseguimos juntar forças com outros profissionais interessados. Nosso objetivo é orientar, fomentar e estimular medidas de prevenção nessa área, com programas de educação e pesquisa para esses pacientes. Os resultados começam a surgir. Temos um estudo em andamento, que é uma avaliação prospectiva de determinantes prognósticos em carcinoma de cabeça e pescoço. Utilizamos mídia social para identificar o que as pessoas sabem sobre a doença. Temos também uma série de iniciativas, como um site voltado para o paciente, além da campanha Make Sense. Graças ao Grupo Brasileiro de Câncer de Cabeça e Pescoço, o Brasil passou a fazer parte dessa campanha mundial de conscientização, que alerta para a gravidade do cenário atual.
No final de 2018 você assumiu a presidência do GBOT, o grupo de pesquisa em oncologia torácica. Quais os planos?
Eu estava no primeiro simpósio anual do GBOT e Entendo que um grupo cooperativo tem que promover ensino, pesquisa e assistência. O Grupo Brasileiro de Oncologia Torácica tem sido muito feliz nessas três atividades. Tive a honra de ter sido convidado para presidir o GBOT no próximo biênio e temos hoje 200 membros titulares. O grupo continua crescendo e mantém pelo menos dois encontros científicos anuais, um em março, que é o Simpósio Norte-Nordeste, além do tradicional Simpósio anual, em outubro. O GBOT faz parte do LACOG e pode desempenhar um papel importante, como um elemento catalisador para integrar as diversas especialidades. O cuidado multidisciplinar do paciente é indispensável. Precisamos sentar todos juntos, o cirurgião, o oncologista, radioterapeutas, patologistas e toda a equipe envolvida na linha de cuidados, como a nutrição oncológica, fisioterapia, enfermagem. Isso tem que ser visto com a finalidade de aumentar a cura, aumentar sobrevida e qualidade de vida.
E cuidados paliativos, é uma necessidade não atendida?
Eu tenho o privilégio de trabalhar no ICESP e na iniciativa privada, no Hospital Sírio-Libanês. Tenho acesso a excelentes profissionais de cuidados paliativos nessas instituições, mas essa, infelizmente, não é realidade na maioria dos serviços. O Brasil precisa criar essa cultura e incorporar cuidados paliativos. Isso precisa ser feito com rapidez, porque cuidados paliativos são parte integrante desse continuum de assistência que precisamos prover para nossos pacientes. O problema é que ainda temos poucos profissionais e existem dificuldades na própria compreensão desse modelo de cuidados. Não pode existir a figura do médico paliativista apenas quando não se pode mais ofertar a cura para esse paciente. Precisamos entender que esse cuidado é contínuo, porque não adianta curar do câncer e acabar com a qualidade de vida do paciente.
Ampliar a participação em pesquisa também está na pauta do GBOT?
Sem dúvida. Temos conseguido uma inserção interessante dentro da Associação Internacional de Estudos de Câncer de Pulmão, a IASLC, e isso vai facilitar a nossa inserção no mundo, trazendo expertise, trazendo conhecimento. É também uma forma de permitir que profissionais daqui possam fazer treinamento lá fora e trocar conhecimento. Queremos investir em estudos que identifiquem os gargalos diagnósticos, estudos de epidemiologia molecular aqui no Brasil, para avaliar, por exemplo, a prevalência de EGFR, de ALK, de PD-L1. Será que não se consegue acesso para genotipar o tumor, ou será que é difícil acesso ao material? O acesso, por exemplo, ao ultrasson endobrônquico, o EBUS, que é essencial para o diagnóstico no estadio 3, é muito difícil aqui no Brasil, muito restrito. O próprio acesso à cirurgia torácica é restrito. Em 2018, tivemos duas publicações de impacto, uma sobre o cenário do câncer de pulmão no Brasil, outra que avaliou quimiorradioterapia seguida ou não de terapia de consolidação, ambas publicadas com revisão por pares. Ao lado da pesquisa, também está na pauta do GBOT e do GBCCP a questão do acesso. Queremos discutir com os administradores de saúde, tanto privados quanto no âmbito do SUS, as dificuldades de acesso. Como podemos avançar em políticas de acesso a medicamentos, acesso a diagnóstico, como prover acesso a reabilitação, que são questões fundamentais.
Apesar dos avanços na política antitabaco, o tabagismo ainda é um problema de saúde pública. Como a comunidade médica pode ajudar?
Aumentar a cessação do tabagismo é um compromisso urgente. Precisamos aumentar a união dentro das diversas sociedades de oncologia, patologia, radioterapia, cirurgia oncológica. O GBOT pode ser esse catalisador e facilitar essa aproximação. É muito bom ver as autoridades de saúde preocupadas em afastar tuberculose, mas temos que lembrar que é importante afastar também o risco de câncer. O problema é que a gente mal consegue fazer estadiamento em fases mais precoces, não tem muito sentido discutir painel molecular se a minha tarefa básica não foi cumprida. Portanto, prevenção e diagnóstico precoce são prioridades absolutas. Em várias regiões do Brasil, o patologista só tem a lâmina corada por hematoxilina eosina, nem imunohistoquímica tem. A minha formação foi no SUS, de onde nunca saí, e precisamos pensar na sustentabilidade do nosso modelo de assistência. Por tudo isso, a cessação do tabagismo precisa ser uma prioridade.
Que caminhos são propositivos?
Primeiro, precisamos mostrar que eliminar o tabaco é uma medida altamente eficaz. Quando o indivíduo para de fumar, a diminuição das consequências do tabaco é imediata. Aqui, não estou falando somente de câncer, mas das doenças cardiovasculares, de doença pulmonar obstrutiva crônica, acidente vascular cerebral, de uma série de problemas associados ao tabagismo. A nossa política antitabaco foi eficaz, mas hoje temos novos desafios, como o aumento do tabagismo entre os jovens. Temos um mercado ilegal que facilita o acesso, mas mesmo o cigarro fabricado legalmente ainda é muito barato. A primeira medida é brecar o consumo pelo bolso. Cigarro é um produto que deveria ser muito caro, temos que aumentar o imposto e vencer o lobby da indústria do tabaco. Fora isso, o caminho é educação. No entanto, os próprios pacientes me contam como é difícil achar um grupo de apoio à cessação do tabaco. Precisamos de centros de referência para indivíduos que querem parar de fumar, com endereços que sejam conhecidos tanto pela população quanto pela comunidade médica. Temos muito a fazer, mas se conseguirmos educar crianças e jovens já teremos dado um salto importante. Hoje, o uso do narguilé tem sido visto como recreação e precisamos enfaticamente bloquear o acesso e desmistificar o uso como algo inofensivo. O mesmo raciocínio vale para o cigarro eletrônico, outra estratégia perigosa da indústria do tabaco. A comunidade médica precisa enfatizar a importância de parar de fumar. Todo médico precisa somar na luta antitabaco e esse papel precisa ser reforçado desde a faculdade de medicina.
E o rastreamento, é possível investir no diagnóstico precoce na população de risco?
O Lux Lung já tinha sugerido e o estudo NELSON consolidou a importância do rastreamento no câncer de pulmão, com o trabalho do grupo europeu. Rastrear a população de risco é sem dúvida alguma uma estratégia importante, que devemos tentar incorporar à realidade brasileira. No entanto, sabemos que existem muitos desafios, como o acesso à tomografia, garantir o rastreamento nos tempos adequados e lembrar que nada disso é melhor do que parar de fumar, que é a prevenção primária. Quando o Brasil tiver avançado e consolidado a prevenção primária, aí sim é hora de investir na prevenção secundária, que é o diagnóstico precoce. As iniciativas de rastreamento existem, inclusive com trabalhos brasileiros, mas sabemos que a gente enfrenta uma série de gargalos em termos de acesso à tomografia, no seguimento desses pacientes e até no encaminhamento, no caso de lesões suspeitas. É um caminho que precisa ser feito.
Perfil: Gilberto de Castro Júnior é médico e doutor em Oncologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Cancerologia e em Clínica Médica pela Associação Médica Brasileira. É responsável pelo Grupo de Oncologia torácica e Cabeça e Pescoço do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e orientador do Programa de Pós-Graduação em Oncologia da Faculdade de Medicina da USP.