A epidemiologista brasileira Elisabete Weiderpass assume a direção da IARC disposta a reforçar a prevenção e fortalecer a pesquisa em câncer.
Desde a criação da Agência Internacional para Pesquisa em Câncer, em 1965, você é a primeira brasileira e a primeira mulher a assumir o cargo de diretora-geral. Qual o significado de estar à frente da IARC?
Acho muito importante que mulheres assumam posições de liderança não apenas em organizações de pesquisa. A diversidade de gênero garante mais sucesso institucional. Por diversas razões, mulheres ainda são uma minoria em posições de liderança em todo o mundo. É importante para o Brasil que cientistas formados no País recebam reconhecimento internacional. Isso indica que existem instituições de qualidade no ensino superior brasileiro e que os pesquisadores podem competir igualmente com cientistas do mundo todo em termos de pesquisa e liderança institucional. Pessoalmente, é uma imensa honra ter sido eleita por representantes dos países membros da IARC. Ser a primeira diretora brasileira é um marco, pois todos os diretores anteriores, nos mais de 50 anos de existência da organização, foram homens e oriundos de países com alto nível de desenvolvimento econômico. Espero que a minha eleição seja uma fonte de inspiração para pesquisadores e pesquisadoras brasileiras!
Quais as principais metas da sua gestão?
Queremos que a IARC tenha enfoque crescente em produzir cada vez mais pesquisas para informar decisões em saúde pública. A comunidade cientifica pode conduzir estudos sobre os efeitos do cigarro eletrônico, de vaporizadores e inúmeros aditivos no cigarro, artifícios da indústria do tabaco que têm ampliado o consumo entre jovens. Estudos como esses podem informar a opinião pública e, principalmente, informar decisões em saúde. No caso dos cigarros, as melhores medidas de controle são na esfera legislativa, como proibição, taxação e restrições a pontos de venda. Outra prioridade da Agência é expandir o número de participantes da IARC. Atualmente, temos somente 26 países membros e o objetivo é incluir regiões do mundo pouco representadas na organização. Veja que atualmente vários países da Europa são maioria e temos América do Norte, com Estados Unidos e Canadá. No entanto, a América Latina é pouco representada, somente com o Brasil, assim como África, apenas com Marrocos, e Oriente Médio, hoje somente com a participação do Qatar. Queremos aumentar a rede de colaboração com os países membros da IARC, mas principalmente precisamos aumentar a participação de países em áreas geográficas menos representadas. Desta forma, esperamos que novos países sejam encorajados a se familiarizar com as importantes atividades cientificas sobre câncer e tornem-se membros ativos da IARC.
O fato de ser brasileira traz um olhar particular sobre a carga do câncer no Brasil?
A prevenção do câncer é absolutamente essencial no Brasil. Certamente é uma área de pesquisa e atuação que poderia ser expandida para benefício da população, considerando que o País vive a transição epidemiológica e caminha para ter o câncer como primeira causa de morbi-mortalidade. O diagnóstico precoce de lesões pré-cancerosas deve ser implementado com abrangência populacional para os cânceres de colo de útero, mama e colorretal. No entanto, a redução da mortalidade só é observada quando o rastreamento é de alta qualidade e alcança grande parcela da população-alvo. Não basta repetir o teste muitas vezes em uma pequena da população. Normalmente, as pessoas de menor risco são as mais fáceis de atingirmos com rastreamento e aquela população de risco é, paradoxalmente, a mais difícil. Atividades de controle de qualidade em todo o processo de rastreamento são absolutamente fundamentais para produzir resultados. Oferecer serviços de rastreamento não significa simplesmente oferecer um teste, mas todo um contínuo de atividades. É preciso assegurar a inclusão de uma grande parcela da população-alvo, garantir o acompanhamento dessas pessoas com resultados positivos para a confirmação do diagnóstico e, evidentemente, o tratamento deve ser acessível e de qualidade. Portanto, para que os serviços de rastreamento tenham impacto na diminuição da mortalidade, precisamos garantir acesso a diagnóstico e tratamento para toda a população, indistintamente. O Brasil apresenta profundas iniquidades na saúde pública. Para doenças graves, como o câncer, é fundamental que o Sistema Único de Saúde possa oferecer cuidados adequados para toda a população, independentemente do nível social.
Considerando a carga global do câncer, que recomendações devem ser valorizadas?
Temos defendido 10 passos que são essenciais na prevenção do câncer. Evitar o uso de tabaco em todas as formas, incluindo o fumo passivo. Manter peso corporal apropriado, o que significa evitar a obesidade. Manter-se fisicamente ativo, com a prática de pelo menos 30 minutos de atividade física moderada por dia, como andar rapidamente, correr, andar de bicicleta ou qualquer outro exercício aeróbico. Outro cuidado fundamental é manter uma dieta saudável, seguindo as recomendações brasileiras. O mais importante é considerar que uma dieta saudável é aquela baseada principalmente em frutas e vegetais. Na prática, evitar comidas ultraprocessadas, evitar alimentos com muita gordura e açúcar. O consumo de sal, carne vermelha e álcool também precisa ser limitado, lembrando que embutidos e outras formas de carne ultraprocessada já foram listados como carcinogênicos nível 1. Evitar a exposição excessiva ao sol, especialmente para as crianças, é outra medida de prevenção do câncer. Além de eleger horários apropriados para a exposição, é sempre fundamental usar proteção solar. Não usar câmaras bronzeadoras, isso precisa ser reforçado. Nos locais de trabalho, evitar exposição a substâncias carcinogênicas e seguir as instruções de segurança quando lidar com produtos químicos. Para as mulheres, fica o alerta de que a amamentação diminui o risco de câncer de mama. Por outro lado, o uso de hormônios para tratar sintomas da menopausa aumenta o risco de câncer, indicando que o uso de hormônios para tratamento de sintomas da menopausa deve ser limitado. Para crianças e adolescentes, vacinar contra hepatites e contra o HPV é sempre uma recomendação importante, que deve ser reforçada pela comunidade médica. Por fim, participar de programas de screening para mama e colo de utero (mulheres) e câncer colorretal (homens e mulheres).
Que mensagem fica para médicos envolvidos na prevenção e cuidados em câncer?
Para os médicos, a grande mensagem é valorizar a importância da prevenção. Todo tempo investido na prevenção, avaliando cada paciente, preconizando recomendações ou prescrevendo ações individuais, é sempre um tempo muito bem investido! Também é fundamental encaminhar pacientes para rastreamento de câncer nas idades recomendadas, com mecanismos de controle para assegurar que o paciente realmente foi fazer o rastreamento e que lesões, se detectadas, sejam acompanhadas do diagnóstico e tratamento adequados. Sem dúvida, isso é importantíssimo.
Epigenética é hoje um tema central na pesquisa em câncer. Que oportunidades estão abertas?
Concordo. Epigenética ainda é uma área relativamente recente, que abre várias oportunidades de pesquisa em todos os tipos de câncer relacionados com exposições ambientais. No entando, os resultados de vários estudos em epigenética não são replicados, o que é problemático, uma vez que o conhecimento científico necessita de resultados replicáveis. Enfim, oportunidades existem, assim como os desafios.
Desafios de acesso aos novos tratamentos têm ocupado a agenda de saúde. Que caminhos você vislumbra para uma ciência mais sustentável?
O Sistema de patentes médicas deveria ser repensado globalmente por governos e instituições de pesquisa. Existem dados na literatura publicados por pesquisadores como o Professor Jeffrey Sachs, da Universidade de Colúmbia, que discutem questões nesta área. Estamos diante de um debate sobre os preços de medicamentos e os direitos de propriedade intelectual. Como combinar os benefícios de um sistema global de patentes capaz de incentivar a inovação e ao mesmo tempo garantir acesso aos cuidados médicos no diagnóstico e tratamento do câncer? Esse debate ganhou nova dimensão com a AIDS e agora nos desafia quando pensamos no acesso aos tratamentos anticâncer. O modelo do IARC oferece a possibilidade de países colaborarem globalmente na pesquisa da prevenção do câncer, de uma forma custo-efetiva. Acho que é um modelo ideal para avançar na pesquisa e no futuro.
Na sua opinião, existem caminhos para vencer a pressão da inovação e deslocar o eixo da terapia sistêmica para a prevenção?
Esta é uma decisão acima de tudo política, que requer ação conjunta de ministérios da saúde, mas também das áreas de ciência e tecnologia, economia e comércio, em cada pais. Não há dúvida de que os recursos investidos em prevenção multiplicam os benefícios e traduzem um claro retorno do investimento. O tratamento do câncer deve ocupar posição fundamental nos serviços de saúde e considerações de custo- benefício devem ser sempre consideradas na definição de políticas.
PERFIL: Elisabete Weiderpass Vainio é epidemiologista e pesquisadora. Foi professora de epidemiologia no Karolinska Institutet, em Estocolmo, Suécia, e professora de Epidemiologia do Câncer na Arctic University, Noruega, país onde atuou como Chefe do Departamento de Pesquisa no Registro de Câncer. Atualmente é diretora da International Agency for Research on Cancer (IARC).