Considerado um dos precursores da oncogenética no Brasil, José Claudio Casali (foto) fala de carreira e das perspectivas para a especialidade, destacando a importância de ampliar acesso a testes e painéis genômicos e os desafios para a expansão. "Discutir genômica em um Brasil que também convive com a desnutrição é uma missão até hoje desafiadora, imagine isso 20 anos atrás", diz.
Você fundou o Departamento de Oncogenética do AC Camargo numa época em que pouca gente falava de oncogenética. Como foi essa experiência?
Em 1996 eu tinha terminado a residência e já estava decidido a estudar a relação entre câncer e genética. Tive um paciente com câncer de rim, com suspeita de síndrome de von Hippel-Lindau, e era tudo muito novo, o gene VHL tinha sido clonado três anos antes. Em 1998, eu comecei no AC Camargo, depois fui para o Instituto de Tumores de Milão e em seguida para o Memorial Sloan Kettering Cancer Center, com essa ânsia de fazer doutorado. Estava realmente decidido a conhecer melhor todo esse universo recém desvendado. Fomos os pioneiros da oncogenética no Brasil. Entrei na primeira turma de pós-graduação do AC Camargo, com o Andrew Simpsom, do Ludwig, como meu orientador, e a Anamaria Camargo como co-orientadora. Passaram por lá nomes como Roger Chammas, Luisa Villa, que é referência em pesquisa do HPV, Vilma Martins e Dirce Maria Carraro. Estamos falando de 20 anos. Discutir genômica em um Brasil que também convive com a desnutrição é uma missão até hoje desafiadora, imagine isso 20 anos atrás. O projeto foi crescendo, a tecnologia avançou e o Andrew foi esse desbravador, uma figura realmente inspiradora. Era um momento mágico. Nessa efervescência toda da genômica tínhamos Humberto Torloni e Ricardo Brentani organizando os primeiros biobancos, tínhamos Décio Brunoni na Escola Paulista de Medicina, outra figura que inspirou tantos pesquisadores. A genômica era essa promessa, estava nascendo. Hoje, todos esses profissionais estão aí liderando a pesquisa brasileira, todos muito bem posicionados. Edenir Palmeiro foi minha estagiária, Maria Isabel Achatz começou com o nosso grupo, Fernanda Lima, Simone Noronha, enfim, muitos profissionais de excelência que hoje contribuem para o avanço da oncogenética no Brasil participaram dessa história. Eu me sinto verdadeiramente um multiplicador. Para mim é uma responsabilidade fazer com que a oncogenética aconteça no Brasil. Eu aprendi que aprendo mais ensinando.
Como despertou o seu interesse pela oncogenética?
Na oncogenética você tenta entender porque uma pessoa com determinada mutação desenvolve câncer, enquanto outras da mesma família não têm a doença. Se a mutação é a mesma, por que o fenótipo muitas vezes varia? Temos estudos com gêmeos idênticos que viveram em famílias diferentes, e a literatura nos mostra que eles acabam se transformando em pessoas diferentes. Sou filho único, minha mãe morreu de leucemia aos 65 anos. No caso dela, a doença se iniciou com um quadro de lúpus aos 60 anos, e eu sabia que era pré-neoplásico. Evidentemente, tudo isso me assombrava. Um dia ela amanheceu cheia de petéquias. Colhemos sangue, eu mesmo fiz o diagnóstico. Em duas semanas ela morreu da toxicidade do tratamento. Não é à toa que eu fui para a farmacogenética, porque queria entender as variantes polimórficas que se manifestam com essa hipertoxicidade. Meu pai morreu quando eu tinha 12 anos, de infarto fulminante. Minha mãe me poupava das notícias, mas depois eu soube que ele já havia infartado várias vezes. Aos 48 anos eu comecei a fazer hipertensão. Era a idade que meu pai tinha quando morreu, fumante de 2 maços por dia. A família dele inteira foi dizimada por doença coronariana. Que presente é esse que a genética me deu? Tenho que mudar essa epigenética! E foi um processo. Você precisa acreditar que as medidas de prevenção são eficazes. A genética não é um destino, você pode desligar esse interruptor. Como? Com prática de esporte, exercício, dieta, mudanças no estilo de vida. A palavra é autocuidado. Eu comecei a aplicar tudo isso. Não dá para dizer para o meu paciente que ele tem que fazer tal coisa, se eu mesmo não faço. Imagine um pneumologista que fuma. Não dá certo. Só que tem um monte de oncologista gordo, e agora? Então, eu tomei essa consciência. Houve uma história decisiva nesse processo, que foi uma vivência com a cultura dos índios Ashaninkas.
E como essa vivência dialoga com a figura do oncogeneticista?
Há quatro anos eu entrei para a CONEP, numa pasta associada a biobancos, genética, para análise de protocolos de pesquisa. Uma das colegas é a Gabriela Marodin, ligada à pesquisa com população indígena. Queríamos conhecer de perto essa realidade, até para entender melhor que tipo de projeto pode beneficiar essa população. Então o Ministério da Saúde nos enviou para a tribo dos Ashaninkas, na fronteira do Acre, a 20 quilômetros do Peru. É uma tribo que só recebeu presença externa em três oportunidades, uma delas a nossa, em setembro de 2017. Foi uma experiência fantástica de autoconhecimento. É uma vivência que permite uma consciência maior do seu corpo e daquilo que você faz com ele. Eu comecei essa busca três anos antes, quando estive em Morungaba, no Centro de Estudos da Consciência. É uma instituição que fica dentro de uma área rural, o Sítio São Damião, e o caminho passa por uma imagem de Nossa Senhora de Schoenstatt. Não sou propriamente um religioso, porque nunca me enquadrei na religião formal, mas aquela experiência foi transformadora. Estava de mudança para Curitiba, separando caixas e caixas, mas eu queria entender por que motivo estava a caminho do Paraná. Foi quando achei uma pequena bíblia que eu havia ganhado da minha mãe quando criança. Abri e ali estava a oração de Nossa Senhora de Schoenstatt, de quem minha mãe era devota. Entendi que era a resposta, que eu deveria ir para Curitiba. E naquele passeio em Morungaba, eu vi pela primeira vez um trabalho de imposição de mãos, o reiki. Mas qual é a evidência? Existe energia curativa nas mãos? Diante disso, a gente deixa de acreditar estritamente na evidência para acreditar no bom senso. A evidência demora a ser construída, enquanto o bom senso é uma proposição que apresenta caminhos. Fazer exercícios, comer bem, ter menos estresse, tudo isso leva a viver melhor. E foi a partir dessa experiência que comecei a ter esse novo olhar. Antes, eu achava que o homem era um corpo com uma alma. Agora, vejo que somos uma alma em um corpo. É como os índios entendem o ser humano. Eles estão muito mais evoluídos que a gente nessa percepção e isso se reflete no modelo de cuidados em saúde. Sem essa consciência o indivíduo começa a fumar, começa a beber, a manter hábitos autodestrutivos. Muitos de nós não conseguem ficar três dias sem ingerir açúcar, por exemplo.
Foi quando passou a se preocupar com o microbioma?
Exatamente, porque conhecendo a questão do microbioma, eu queria mudar a minha flora intestinal, mudar as bactérias que me habitam. Então, aproveitei essa experiência na floresta inclusive para essa transformação. Cerca de 70% das nossas células nucleadas são bactérias e apenas 30% são humanas. Prova de que somos esse grande mosaico, uma quimera, com parasitas, bactérias e vírus que nos habitam. Foi muito revelador ver como eles trabalham de forma integrada em benefício de todos, cada um com a sua função. Isso tem muito a ver com o conceito de medicina integrativa que nós aplicamos hoje.
E que modelo de medicina integral é esse?
Percebemos que essa soma de esforços é a chave de tudo. Escrevi esse modelo de integração para a nossa clínica e o planejamento dos próximos 10 anos, porque agora estou seguro de como conduzir tudo isso. Dúvidas que eu alimentei por anos simplesmente se dissiparam. Todas as respostas vieram e vocês vão ver nos próximos anos a revolução de genética que vai acontecer, porque estamos criando uma estrutura realmente poderosa. Fizemos um modelo virtual com uma equipe multidisciplinar e integrativa. No centro desse modelo está o paciente e em torno dele todos os profissionais que estão integrados nessa linha de cuidados. Significa que eu preciso me comunicar com o cardiologista do paciente, com o nutricionista dele, com o seu educador físico, enfim, estabelecer uma comunicação efetiva com todos os profissionais que cuidam desse paciente. Temos que estar alinhados, falando a mesma linguagem, cada um dentro do seu quadrado, porque esse conhecimento hoje é compartilhado. A minha solução de medicina integrativa é esse modelo virtual, em todas as clínicas. Eu chego hoje no consultório e tenho todos os dados da dieta e do perfil inflamatório desse paciente, com o recordatório nutricional, já tenho a árvore da família, todo o histórico dele está ali. Entre os índios, é o cacique quem desempenha esse papel de ser o grande integrador, promovendo inclusive conferências internacionais com caciques de outras tribos.
Os sentidos de saúde e doença entre os Ashaninkas podem deixar lições para a oncologia?
Com certeza! Eles têm rituais espirituais e fazem curas. Certo dia chegou um rapaz com queixa de dor no braço e tive oportunidade de presenciar o pajé realizando uma espécie de ‘jorei’. Ficou concentrado ali, houve a impostação das mãos no local em que o rapaz referia a queixa de dor e depois de algum tempo ele se dizia aliviado, a fisionomia era outra. Estava visivelmente bem. Pode ser o efeito placebo? Claro que sim. O efeito placebo existe e está ligado a até 20% das respostas com medicamentos, por simples indução. Mas não é meramente o efeito placebo o que se vê entre os Ashaninkas. Eles acreditam na cura do espírito. O corpo eles mantêm com uma alimentação criteriosa, com um estilo de vida que faz toda a diferença. Comem peixe no café da manhã, comem mandioca, frutas em abundância. Leite de vaca eles não tomam. O leite de vaca tem caseína, que é uma proteína altamente inflamatória. A caseína é muito vendida e consumida em academias para aumentar massa muscular. Na verdade, você não está ganhando massa, mas inflamando os seus músculos. Enfim, o estilo de vida do índio não abre espaço para a tecnologia, para celular, nada disso. Claro que temos lições a aprender com eles. Primeiro, saber ouvir. Você tem que estar atento ao que as pessoas te dizem, ter sensibilidade para interpretar os sentidos. Quando um paciente é encaminhado a um geneticista e não vai à consulta, precisamos entender o que está por trás dessa atitude. É uma limitação que nasce do medo? É importante pensar sobre as barreiras que impedem ou dificultam a trajetória de um paciente. Muitas vezes esse paciente não quer ver a realidade. Você tem que entrar no universo dessa pessoa, se aproximar. Costumo brincar que eu viro aquele primo, passo a fazer parte da família do paciente para entender qual a melhor forma de conduzir aquele aconselhamento genético. Quando a gente fala em medicina de precisão é justamente por reconhecer que as pessoas são únicas e carregam essa singularidade.
Como garantir mais acesso aos painéis moleculares?
Temos desenhado e validado painéis multigênicos germinativos e somáticos de baixo custo e alto desempenho, utilizando sequenciamento de nova geração, o Next Generation Sequencing (NGS). São soluções que atendem realidades como a nossa, com limitações econômicas que afetam o financiamento da saúde. Evidentemente, os painéis extensos que sequenciam todo o exoma ainda estão distantes do nosso dia a dia, pelo alto custo. Então, desenvolvemos um painel para triagem germinativa, com 27 genes, além do Oncoalvo Tumoral, um painel de 57 genes para mutações somáticas, que é também uma solução custo-efetiva. São plataformas que atendem as necessidades de oncologistas e pacientes brasileiros, dentro da realidade das fontes pagadoras. Isso abre espaço para a grande revolução genômica que queremos promover no Brasil.
Perfil: José Cláudio Casali é médico pela Universidade Federal Fluminense, com residência em Oncologia Clínica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), doutorado em Oncologia pela Fundação Antônio Prudente e pós-doutorado em Farmacogenética pelo St Jude Children's Research Hospital (EUA). Atualmente é chefe da Oncogenética do Hospital Erasto Gaertner, em Curitiba.