Raphael Brandão (foto), chefe do Américas Oncologia no Brasil, é um dos mais jovens especialistas à frente de um time de oncologia e defende mais racionalidade na prescrição.
Por que a oncologia, como foi essa escolha?
Durante a graduação eu era até motivo de piada entre os colegas. A cada semestre, a cada disciplina, eu mudava minha especialidade. Já quis ser cirurgião, psiquiatra, cardiologista. No final do curso, no sexto ano, prestei psiquiatria no Rio de Janeiro e clínica médica em São Paulo, e acabei escolhendo fazer clínica médica. E mesmo durante a clínica eu ainda pensava em cardiologia, nefrologia, UTI, eu me apaixonava por várias áreas a todo momento.
No final do meu R1 de clínica médica eu vivi uma situação que foi decisiva. Eu tive uma prima bem próxima diagnosticada aos 34 anos com câncer de mama triplo-negativo, bastante avançado. Infelizmente ela teve sobrevida de um ano, aproximadamente, e durante esse período foi muito bem tratada pelo Daniel Gimenes, que hoje é um grande amigo com quem já tive a oportunidade de trabalhar. E ele foi extremamente humano durante o tratamento. Essa experiência foi crucial e me fez perceber o quanto a oncologia pode interferir no cuidado do paciente, além da prescrição do remédio. Tem todo o cuidado humano, além dos desafios próprios da especialidade, que é extremamente dinâmica. Eu tenho uma personalidade inquieta e me dou bem com a oncologia um pouco por conta disso. Realmente é um campo desafiador e eu gosto de desafios. Depois que tomei a decisão, nunca tive dúvida de que fiz a escolha certa. É claro que a gente perde pacientes, e é sempre muito difícil. Mesmo tendo o conceito de finitude bem claro, é sempre difícil, somos humanos. E é impossível nós não nos relacionarmos, nos afeiçoarmos aos pacientes.
Você desenvolveu uma estratégia pessoal para lidar com essas perdas e se defender de um possível burn out?
Burn out é uma realidade dentro da nossa profissão. Há pouco tempo foi demonstrado que a oncologia é uma das áreas com os maiores índices de burn out. É uma especialidade que promove um esgotamento psíquico importante, o que acaba tendo impacto em diversas outras áreas da vida, inclusive na prática clínica. Eu já sofri burn out, no final da minha residência em oncologia. Foi extremamente difícil. Acho que a grande estratégia é buscar estar próximo da família, dos amigos, ter um tempo de lazer. Hoje eu me preservo mais, nos finais de semana procuro ficar com meus filhos, com minha família. Há pouco tempo comecei a praticar tênis, por conta de um paciente que me estimulou, então acho que essas coisas ajudam bastante a mudar o foco, isso é importante.
Na United Health realizamos um treinamento de cultura, e aprendemos diversas ferramentas, dentre elas, uma que se chama elevador do humor. É uma prática diária de observar como você está naquele momento, se eventualmente me sinto mais irritado, mais triste. Essa ferramenta estimula os funcionários a falar sobre isso, com total liberdade. Sou um fã desse treinamento de cultura, já fiz duas vezes, e é incrível, uma proposta realmente nova aqui no Brasil.
Você esteve no Dana-Farber, um dos principais centros mundiais de ensino, pesquisa e assistência em câncer. Qual o maior saldo dessa experiência?
Foi a melhor experiência profissional que eu tive, algo inesperado na minha vida. Nunca almejei morar nos Estados Unidos, estudar fora do país, mas eu tive um grande mentor, meu amigo pessoal até hoje, que é o doutor Buzaid, que sempre me estimulou a ir para os Estados Unidos complementar minha formação. Então, ganhei o meu primeiro merit award, prêmio concedido pela ASCO a jovens oncologistas, e recebi um convite para fazer um formal fellow nos EUA, onde fiquei entre 2015 e 2016. Foi uma experiencia fantástica. É muito interessante conviver e ter como colegas os profissionais que são grandes pesquisadores, autores de papers publicados em periódicos importantes. Além de ter tido a experiência de viver nos EUA, de conviver com uma cultura extremamente eficaz e produtiva, lá eu pude aprender realmente sobre pesquisa clínica, fazer uma imersão no mundo acadêmico. Todos os dias discutíamos inúmeros papers, fazíamos follow up de vários projetos de pesquisa. Tive a oportunidade de escrever e apresentar mais de 15 abstracts no Congresso da ASCO, ganhei mais dois merit awards, foi um ano extremamente produtivo. E criei vínculos que são duradouros, que se perpetuam e crescem até hoje, e promovem o intercâmbio de informação, de estudos em colaboração. Agora mesmo estou escrevendo um capítulo sobre melanoma com o Patrick Ott, diretor clínico do Centro de imuno-oncologia do Dana-Farber. Foi um ganho imensurável.
Você é um dos mais jovens especialistas à frente de um time de oncologia. Como foi deixar exclusivamente a clínica para assumir também a gestão?
Foi bem desafiador, uma decisão bastante difícil que eu tive que tomar. Eu vejo pacientes todos os dias, atendo todos os dias, mas é óbvio que tenho períodos da semana voltados para a parte de gerenciamento, como chefe do Americas Oncologia da United-Health no Brasil. O que me dá um grande suporte é o time de profissionais extremamente experientes, autoridades nessa área, a quem eu recorro a todo o tempo. Estou em fase de aprendizado e eles me ensinam muito essa parte de gestão. Tenho o privilégio de ter o Dr Claudio Lottenberg como mentor, e isso me dá bastante segurança. Também temos um time fantástico na área médica, uma equipe que quer mudar a forma de fazer oncologia no país. O nosso grande sonho é que o paciente tratado em um hospital da Zona Leste, por exemplo, tenha o mesmo tipo de tratamento do paciente tratado no Samaritano ou no Paulistano. Que o paciente tratado em Recife receba o mesmo tipo de tratamento daquele tratado em São Paulo ou no Rio de Janeiro. É homogeneizar a conduta dos nossos pacientes. Essa é a nossa meta.
A ESMO traz este ano um debate sobre diferença de gêneros e como isso impacta o tratamento do câncer. Quais as suas impressões a respeito?
Este é um tema realmente pouco explorado na oncologia, na medicina de uma forma geral. Quando estava na faculdade me lembro de um artigo publicado no New England Journal of Medicine que abordava a diferença de atividade da digoxina, um medicamento para o coração, e mostrava aumento na mortalidade em mulheres, em pacientes com insuficiência cardíaca e disfunção do ventrículo esquerdo. Eu gosto muito de fazer analogia com a cardiologia porque, na minha opinião, é uma especialidade que esteve na vanguarda do conhecimento médico. Hoje, aprendemos muitas coisas na oncologia que a cardiologia já conhecia. A medicina personalizada, tema do Congresso da ASCO esse ano, reforça que cada ser humano é único, cada doença, é única. Não dá para colocar tudo dentro de um mesmo pacote. Eu acho que a questão do gênero entra nessa questão. A gente sabe que dependendo da quimioterapia existe aumento de toxicidade nas pacientes mulheres, por conta de uma diferença no metabolismo das drogas, uma diferença da farmacocinética e farmacodinâmica dessas pacientes. Por exemplo, um estudo pequeno com capecitabina mostrou aumento de toxicidade nas mulheres. Existe uma hipótese, inclusive, de diferença de resposta imunológica: será que a mulher tem uma resposta imunológica diferente do homem? Um paper fantástico de um grupo suíço publicado no Journal of Clinical Oncology recentemente discute a importância do gênero. Esse trabalho também discute o predomínio de homens nos clinical trials de fases I e II. Aproximadamente 37% dos pacientes nesses estudos são mulheres. Esse já é um viés que deve ser questionado e debatido. Hoje, na hora de prescrever um tratamento, a gente considera apenas peso e altura, a superfície corpórea do paciente. Será que não vale à pena incluir o gênero nessa equação?
Outra discussão que devemos considerar também é, por exemplo, a interferência do IMC ou da idade do paciente na resposta ao tratamento. Não temos essas respostas ainda, mas acredito que tudo isso deve ser considerado. A gente tenta simplificar ao máximo para poder ter controle do tratamento e acho que alguns aspectos precisam ser debatidos e entrar na equação.
Recentemente a sociedade europeia também lançou a Esmo Scale of Clinical Actionability Target (ESCAT), uma proposta para apoiar o uso de alvos moleculares na prática clínica. O que você achou dos critérios dessa escala? Tem aplicação na prática?
Completamente. A gente sabe que a medicina personalizada trouxe um benefício inquestionável. Porém, eventualmente eu encontro mutações em tumores para as quais nunca foi testada a eficácia daquele remédio. E é óbvio que tem um impacto de custo, além de um impacto emocional. Os testes moleculares de next generation sequencing (NGS) costumam encontrar mutações e sugerir os remédios. Por exemplo, o teste encontra a mutação BRAF em um paciente que não tem melanoma. A gente sabe que em pulmão tem atividade, alguns estudos mostram certa atividade também em cólon, mas para uma paciente com câncer de mama com essa mutação vem a sugestão de um inibidor de BRAF. Acho muito complicado isso, porque vai implicar em custo para o paciente, eventualmente ele judicializa, e se o juiz interpretar isso de uma forma, ao meu ver, não muito acadêmica e der um parecer favorável, essa decisão vai implicar um custo e provavelmente não trará resposta. Então, acho que essa categorização, essa escala, vai ajudar muito na prática clínica e vem nos dar mais segurança diante do paciente.
Você participou de estudo de imunoterapia em câncer renal. Como vê os avanços e desafios da imunoterapia hoje? Quais as suas apostas e críticas?
A gente sabe que a imunoterapia traz bons resultados, novos tumores vêm sendo testados e naqueles tumores onde a princípio o tratamento não funcionava, como por exemplo o câncer de mama, tem se observado atividade em algumas subpopulações de pacientes. Hoje, o que nós temos visto são alguns estudos tentando associação de outras terapias, como radioterapia, quimioterapia e terapias-alvo, com a imunoterapia. Essas são as minhas apostas para a próxima ESMO, a combinação dos tratamentos. A minha grande preocupação é que ainda não encontramos um biomarcador. Nós sabemos que o PD-L1 é útil para alguns tumores, como pulmão, sabemos que em pacientes com instabilidade de microssatélites ou em tumores com alta carga mutacional a imunoterapia tende a funcionar melhor. Mas ainda não temos uma assinatura imunológica, como no câncer de mama, por exemplo. O ideal seria encontrar essa assinatura para dizer realmente qual a chance daquele paciente responder ao tratamento. Isso tem um impacto direto também nos custos. Eu acabo utilizando o remédio adequado, gastando dinheiro com segurança, porque as chances de funcionar naquele paciente são realmente altas. A gente tem que se preocupar com o desperdício, em gastar o dinheiro naquilo que tem chances muito baixas de funcionar.
Outra questão extremamente nova e interessante na imunoterapia é quais os grupos de pacientes com melhores resultados, se em pacientes obesos, idosos, mulheres ou homens. Existem algumas nuances específicas, precisamos de alguns dados mostrando benefícios do tratamento além da progressão. Imuno é diferente de químio, muitas vezes você começa o tratamento, a lesão engorda um pouquinho, demora um pouco mais para responder, mas acaba respondendo depois de um certo tempo. A toxicidade também é outro dado interessante, às vezes o paciente que tem toxicidade graus 3 ou 4 e interrompe o tratamento encontra uma resposta duradoura após a imunoterapia. A imunoterapia é uma oncologia totalmente nova que ainda estamos aprendendo. É voltar ao básico da oncologia para tentar entender e oferecer o tratamento aos pacientes que têm melhores condições de responder. E isso envolve performance status, linhas de tratamento. É óbvio que o paciente que está na quarta, quinta, sexta linhas de tratamento tem menor chance de responder. É trabalhar isso enquanto ainda não temos aquele esperado biomarcador que vai realmente nos dizer se o paciente vai ou não se beneficiar.
A pressão dos custos alimenta um debate antigo na oncologia. Que caminhos você vislumbra para modelos mais sustentáveis?
Não tenho dúvida de que o modelo sustentável envolve toda a jornada do paciente, desde o diagnóstico até o final de vida. Por mais que possa parecer clichê, essa preocupação ainda é pouco observada na prática. Se você consegue fazer o diagnóstico precoce e começar o tratamento rápido, enquanto o paciente está em melhores condições, os desfechos clínicos são melhores. Além disso, a prescrição precisa ser racional. Existem indicadores, e um deles é o tempo desde que o paciente recebeu qualquer tratamento, até o óbito. Ou seja, muitas vezes os pacientes recebem quimioterapia ou imunoterapia na UTI, e acabam indo a óbito. É preciso colocar a realidade diante do paciente, associar a medicina integrativa, cuidados paliativos, entendendo também que controlar os sintomas dá uma boa qualidade de vida no final de vida. É uma abordagem extremamente efetiva e eficaz, que envolve a multidisciplinaridade da oncologia. Nós temos diversas ações hoje, cientificamente comprovadas, que são fantásticas. Atividade física, alimentação, meditação, o mindfullness, o coach oncológico, que é algo novo e vem mostrando benefícios.
Ano passado, um estudo apresentado na plenária da ASCO mostrou que os pacientes que tinham acesso ao time multidisciplinar por meio de um dispositivo eletrônico, uma espécie de whatsapp, tinham aumento de sobrevida. Isso reforça que facilitar o acesso dos pacientes à equipe médica tem um impacto. Às vezes o paciente começa uma diarreia, ele não tem acesso ao sistema de saúde, ao hospital, ao médico, e essa diarreia pode piorar, e eventualmente a gente vai intervir em um momento mais complicado, uma colite na imunoterapia. Eu sempre falo para os pacientes, qualquer problema, mesmo que pareça uma dúvida boba, entre em contato. Quando a gente consegue intervir mais cedo, a chance de resolver é muito maior.
E a obstinação terapêutica?
Às vezes, é muito mais fácil para o oncologista prescrever uma quimioterapia diante de uma progressão, do que encarar a realidade da falência terapêutica. O ideal, nesse cenário, é realmente envolver a equipe multidisciplinar e explicar para o paciente e familiares, já fizemos duas, três linhas, não tivemos sucesso, realmente nós vamos buscar o maior conforto, maior qualidade de vida, vamos continuar cuidando de você.
Na United, por exemplo, nós não estimulamos ou desestimulamos esse comportamento, não temos nenhum tipo de auditoria ou vigilância em relação a isso. Porque somos treinados o tempo todo para tratar quem verdadeiramente precisa ser tratado, quem vai ter benefício, e evitar os desperdícios. E quando a gente fala evitar o desperdício é não dar quimioterapia se o paciente já é politratatado e está com um performance status ruim. Isso aumenta o sofrimento para ele e sua família, gera uma expectativa de um milagre final que a gente sabe, na prática, que é irreal. Acho que uma grande mudança já, de imediato, é o modelo de remuneração médica. Acho que o fee for service, o ganho conforme a produtividade, é um modelo que não é adequado para a medicina como um todo e especialmente na oncologia. O fato de gerar dúvidas no paciente se ele está recebendo determinado remédio porque ele é realmente o melhor remédio ou porque vai dar uma margem de lucro maior é extremamente complicado. Existe um conflito ético muito grande aqui. Mudando esse modelo, colocando uma boa remuneração fixa, você acaba com esse viés. O médico ganha o mesmo valor se ele prescrever droga A ou droga B. Tirando esse viés eu acho que a gente já melhora bastante o desperdício.