Em entrevista exclusiva, o Diretor-Presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa da Silva Júnior (foto), comemora a etapa final do sistema de rastreabilidade de medicamentos, diz que o Brasil avança nas primeiras aplicações de big data em saúde e que já está regulando a plantação de Cannabis para uso terapêutico. “Ter um ambiente regulatório que facilite a pesquisa clínica é muito importante para a Saúde no Brasil”, afirma. Confira.
Onconews: Real World Data e big data, que desafios e implicações isso traz para a vigilância sanitária?
Jarbas Barbosa da Silva Júnior: Esse é um campo extremamente promissor e as agências regulatórias estão iniciando seus processos no mundo inteiro. Nós temos um intercâmbio muito grande entre as agências que fazem parte do International Coalition of Medicines Regulatory Authorities, o ICMRA. Temos trocado informação e compartilhado experiências. Eu conheço particularmente bem a experiência norte-americana. Em uma visita que fizemos ao FDA no ano passado eu pedi que esse fosse um dos pontos de atualização. O sistema deles tem uma série de particularidades que permitem uma utilização maior desses dados, porque a informatização avançou muito, os prontuários eletrônicos são realidade e os seguros saúde privados reembolsam medicamentos, o que significa que eles têm grandes bases de dados estruturados, que hoje servem a um sistema de farmacovigilância, por exemplo. No Brasil nós estamos iniciando e temos uma cooperação com a Fiocruz na Bahia, que montou um centro de big data voltado para a Saúde. Eles têm acompanhado o banco de dados que reúne todas as famílias cadastradas no CADÚnico, que é o cadastro único dos programas sociais, uma base de dados de 120 milhões de pessoas. Temos trabalhado com eles nessa proposta de usar grandes bancos de dados estruturados e não-estruturados, como por exemplo as mídias sociais, avaliando seu potencial para alertas de farmacovigilância.
Existem preocupações com o registro sanitário a partir de bases pouco consistentes ou com dados fragmentados, o que para alguns críticos pode se transformar em um big noise. Qual a sua visão?
Claro que a utilização desses bancos depende muito da qualidade dos dados e de sua completude. Nos próximos anos, a grande utilização será provavelmente para a detecção de alertas de ocorrências de não-conformidades que chamem a atenção. Hoje, milhões de pessoas que utilizam sistemas hospitalares têm seus dados armazenados em prontuários eletrônicos, em sistemas que podem permitir ao Ministério da Saúde identificar desfechos inesperados para um determinado medicamento, para órteses, próteses etc. As mídias sociais também têm sido utilizadas como alertas precoces, com dados do Facebook, de buscas no Google, no Twitter, o que não significa substituir os sistemas convencionais de notificações de farmacovigilância. O potencial é muito grande, mas sem dúvida alguma ainda vamos avançar bastante para definir parâmetros e padrões de qualidade para a plena utilização desses grandes bancos de dados.
Em março a Anvisa alertou sobre a falsificação de 11 lotes do Sutent®. Como podemos melhorar o controle de medicamentos e valorizar a segurança do paciente?
A grande ação será a implantação completa do módulo do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos, que é o sistema de rastreabilidade. Nós estamos cumprindo os prazos da lei, terminamos toda a parte regulatória e agora estamos na fase de testagem. Foram escolhidos os fabricantes, os importadores, distribuidores varejistas e as secretarias municipais de saúde que farão parte desse piloto e agora vamos testar a transmissão de dados. Estamos concluindo o contrato com o DataPrev, que será responsável pelo armazenamento e gestão do banco de dados, e a nossa expectativa é terminar em agosto deste ano esse projeto-piloto. Depois teremos oito meses para uma avaliação inicial e a partir daí mais três anos para a implantação completa. No Sistema Nacional de Controle de Medicamentos temos na rastreabilidade a melhor resposta para enfrentar o problema da falsificação. Com os preços elevados dos novos medicamentos para o tratamento do câncer podemos enfrentar novamente o mesmo problema que tivemos em março. Somente um sistema de rastreabilidade vai poder enfrentar de forma efetiva tanto esse tipo de situação, da falsificação, como também o roubo de cargas, que infelizmente acontece. A grande questão é que enquanto o sistema não está implantado, as áreas responsáveis pela aquisição de medicamentos devem estar atentas. A falsificação do Sutent® foi relativamente grosseira, mas foi encontrada inclusive na rede privada. Então, todas as áreas de logística que fazem aquisição e recebem medicamento precisam estar comprometidas com um processo muito criterioso. Por conta disso, a Anvisa este ano fez questão de chamar a atenção do Ministério da Saúde para a necessidade de um cumprimento muito restrito da nossa regulamentação, defendendo que sem a declaração do detentor do registro não se fará a importação de medicamentos, porque não há segurança da origem. As áreas que fazem aquisição devem cumprir as regras e exigir todas as declarações, inclusive o certificado de boas práticas de armazenagem e distribuição, no caso de uma importadora ou distribuidora. É uma maneira de se proteger e evitar a utilização de medicamentos falsificados, que é um crime bárbaro porque põe em risco a vida dos pacientes.
Em momento recente a Anvisa recebeu duras críticas sobre os processos de análise para registro de oncológicos e agora temos visto mais agilidade nas aprovações. O que mudou?
Eu creio que houve uma tomada de consciência da Anvisa muito forte. O nosso desafio, não só nosso, mas de todas as autoridades regulatórias do mundo hoje, é um duplo desafio. De um lado, manter a análise cuidadosa e criteriosa para garantir segurança e eficácia dos medicamentos, mas ao mesmo tempo buscar mecanismos que consigam dar mais agilidade aos processos de análise, sem perder a qualidade. A regulação tem que ser um facilitador e não uma barreira ao acesso. Então, a Anvisa fez uma revisão muito profunda de suas práticas e seus métodos de trabalho. Modificamos vários regulamentos e instituímos a RDC que passou a estabelecer novos processos de priorização, assim como modificamos a regulação para permitir também o registro de estudos apenas com fase II concluída e fase III iniciada, para patologias sem alternativas terapêuticas. A revisão dos nossos processos de trabalho se pautou na busca por mais eficiência. O êxito já pode ser observado, porque a Anvisa hoje tem um back log muito menor do que se via em período recente. Em alguns casos, como nos genéricos, vamos zerar esse back log ainda este ano. No caso de medicamentos inovadores também praticamente não temos pendências, porque assim que entra o pedido já começa a análise, situação que se repete com todos os biológicos. Então, é uma Anvisa diferente comparada a três ou quatro anos atrás, em busca de mais eficiência. Os tempos de análise foram encurtados com uma organização melhor do trabalho e os números têm mostrado que estamos no caminho certo para garantir o acesso dos brasileiros aos novos medicamentos.
Este ano, o FDA publicou no JAMA Oncology um balanço dos 25 anos de aprovação acelerada, indicando que 5% desses agentes foram retirados do mercado pelos próprios patrocinadores, 40% não completaram estudos de pós-comercialização para as indicações recebidas e 72% das aprovações foram embasadas em estudos de braço único. Qual a visão da Anvisa?
Nós acompanhamos tanto a experiência americana, quanto a japonesa e europeia, que são hoje as mais consistentes e mais antigas do mundo, e nos espelhamos nesses modelos para criar nosso próprio modelo de avaliação acelerada. Eu creio que esses achados demonstram que os processos precisam de constante aperfeiçoamento. A análise tradicional não consegue responder a várias situações. No caso de alguns cânceres você não tem bons comparadores e isso gera sérias dificuldades para realizar estudos clínicos tradicionais. Todas as autoridades regulatórias têm obrigação de buscar processos e metodologias de análise que tenham flexibilidade para se adaptar a essas circunstâncias especiais e com isso preservar o binômio de assegurar rapidez no acesso, garantindo alta qualidade na análise de eficácia e segurança.
Biossimilares na oncologia. Que mensagem fica para o prescritor?
A Anvisa tem adotado um caminho semelhante ao de diversas agências regulatórias do mundo ao considerar que a intercambialidade não é um problema regulatório, mas do protocolo clínico e da prescrição. Diferentemente dos medicamentos de síntese química, em que os genéricos se apoiam em estudos de bioequivalência e biodisponibilidade em relação aos medicamentos de referência, no caso dos biológicos isso não se aplica. Se nós disséssemos que o biossimilar é intercambiável, estaríamos abrindo um precedente perigoso que poderia levar a problemas graves. Então, nós preferimos adotar a posição de dizer que diante dos testes apresentados, esse biossimilar comprova sua eficácia e segurança, mas a substituição fica a cargo do prescritor. No caso do SUS, fica a critério da Conitec validar protocolos padronizados. É importante enfatizar que os prescritores devem estar muito atentos aos estudos publicados, devem conversar com os pacientes e fazer uma avaliação criteriosa. Os biossimilares são extremamente promissores, porque com isso podemos ter uma redução dos custos. Hoje, o custo dos biológicos é altíssimo para os sistemas de saúde, públicos e privados. Quanto mais biossimilares nós tivermos, desde que comprovem segurança e eficácia, o prescritor vai ter mais opção e o acesso vai ser facilitado.
Câncer e agrotóxicos. Existe uma crítica muito contundente da Abrasco em relação à flexibilidade regulatória para o uso de agrotóxicos, inclusive sob o argumento de que mantemos aqui produtos banidos em outros países. Como recebe essa crítica?
As vezes a gente tem que separar o que é a crítica ideológica do que é a crítica baseada em evidências. A Anvisa trabalha com todos os limites que estão estabelecidos por acordos internacionais. É o caso, por exemplo, dos códigos alimentares. Nós não toleramos nada que esteja acima dos parâmetros fixados em comum acordo pela Organização Mundial de Saúde e a FAL tendo em vista a evidência científica disponível. A nossa responsabilidade e a nossa atribuição legal é fazer a avaliação criteriosa desses produtos, considerando inclusive se são passíveis de produzir câncer ou mutagenicidade, sempre com base em parâmetros internacionais. Não existe hoje no Brasil nenhum agrotóxico que não seja também empregado em países com culturas agronômicas equivalentes. As críticas do dossiê da Abrasco têm infelizmente problemas metodológicos gravíssimos que não o qualificam como um documento científico. Entendo que é mais um documento de advocacia. No que se refere aos agrotóxicos, o Brasil faz uma avaliação muito criteriosa e atua absolutamente em conformidade com todas as recomendações internacionais.
Abordagem tumoral agnóstica é um novo paradigma que desafia as autoridades regulatórias. Qual a visão da Anvisa?
A Anvisa vem procurando adaptar seu marco regulatório a essa situação. Um dos grandes debates do mundo hoje sobre os biológicos é exatamente esse, como é possível aprovar um medicamento para diferentes indicações, sem esperar a realização de um fase III completo, o que vai levar pelo menos uns cinco anos, mas que nos permita o mínimo de base científica para dizer que aquela alegação terapêutica pode ser validada. Seguramente, é um desafio muito grande e a Anvisa, de maneira semelhante a outras autoridades regulatórias do mundo, tem buscado essa flexibilidade para que se possa ter aprovações mais rápidas, mas com o mínimo de consistência técnico-científica. Esse é um dos debates talvez mais agudos que nós temos hoje. Se for exigir um ensaio clínico completo de fase III para todas as indicações secundárias, terciárias etc dos biológicos, o tempo e o custo envolvidos ficam proibitivos. Por tudo isso há essa preocupação de como encontrar caminhos mais curtos.
Artigo do Lancet Oncology mostrou que menos da metade dos estudos que embasaram aprovação de oncológicos pelo FDA em 2015 e 2016 passaram na escala de magnitude de benefício clínico. Fica a percepção de que estamos assistindo à aprovação de novos agentes com frágil validação de eficácia e segurança. Como a Anvisa analisa isso?
Esse é um dos grandes desafios que nós temos. Seguramente esse estudo que você mencionou reafirma a necessidade de ao mesmo tempo ter processos de avaliação que sejam rápidos, mas que garantam uma revisão criteriosa. Estudos iniciais que demonstravam grande benefício não sustentaram resultado quando os ensaios foram ampliados ou quando se passou a monitorar a utilização pós-mercado. Em muitos casos não demonstraram nenhuma superioridade em relação a alternativas terapêuticas já existentes. Isso é sempre um alerta para o rigor científico que todas as autoridades reguladoras têm que ter.
Pesquisa clínica em câncer e segurança do paciente. Onde avançamos e o que podemos melhorar?
A Anvisa tem uma regulação de 2015 que produziu um efeito muito positivo. Os tempos de análise eram muito longos, não havia previsibilidade. Isso se somava aos tempos de avaliação da Conep, o que fazia do Brasil um país de poucos estudos clínicos em relação ao nosso potencial. Temos uma população grande, muito miscigenada e teoricamente é muito mais fácil fazer um recrutamento aqui para qualquer fase de um ensaio clínico. Mas tínhamos essas barreiras. Da nossa parte, isso foi resolvido. A regulamentação agora dá previsibilidade. Se é um ensaio clínico já aprovado por outras agências e recebemos o dossiê pleiteando nossa avaliação, a Anvisa tem que se manifestar em até 90 dias, porque ultrapassado esse prazo o ensaio está automaticamente autorizado e pode ser iniciado no Brasil. Hoje, temos inclusive reuniões pré-submissão, o que tem sido muito útil, porque permite aos centros ajustarem seus protocolos. Isso tem se refletido no aumento do número de ensaios clínicos no Brasil. Significa mais acesso a alguns medicamentos inovadores e muitas vezes estamos falando de patologias sem alternativa terapêutica ou com poucas alternativas terapêuticas disponíveis. Além disso, a pesquisa clínica ajuda a desenvolver tecnologicamente o nosso país. Ter um ambiente regulatório que facilite a pesquisa clínica é muito importante para a Saúde no Brasil e ajuda a atrair novos desenvolvedores.
Que lições extraímos do episódio fosfoetanolamina?
Uma lição fundamental, porque o congresso se envolveu ali em duas situações muito delicadas. Primeiro, uma ilegalidade, porque a Constituição brasileira é muito clara ao definir o que é prerrogativa do Executivo e o registro de medicamentos é competência do Executivo garantida por Constituição e depois por Lei Ordinária. Então, o Legislativo descumpriu a própria legislação que criou e aprovou. O segundo erro foi transformar um processo que deveria ser rigorosamente técnico em um processo político no pior sentido da palavra. Nunca houve por parte dos desenvolvedores nenhum interesse em fazer ensaio clínico e o registro nunca foi pedido. Nenhum estudo sério feito no Brasil por vários centros mostrou qualquer atividade. Os ensaios pré-clínicos demonstraram resultados absolutamente inaceitáveis e o ensaio clínico realizado no ICESP também não mostrou qualquer benefício. Foi sem dúvida alguma uma lição importante diante de uma atitude que beirou um crime contra a saúde pública. Muitas vezes, a tentativa de abraçar uma causa popular pode levar o Congresso a um caminho muito complicado, porque no mundo inteiro isso poderia afetar a confiança do medicamento feito no Brasil. É registrado com análise da Anvisa ou foi licenciado pelo Congresso? Nenhum país desenvolvido no mundo comete esse erro, que felizmente foi barrado pelo STF.
Outra polêmica, a maconha tem sido utilizada na Oncologia. Qual a posição da Anvisa?
A Anvisa desde 2014 autorizou a importação do extrato do canabidiol para diversas indicações. Em 2015 isso foi ampliado e uma das indicações é exatamente para controlar efeitos adversos da quimioterapia, quando os métodos tradicionais não tiveram êxito. Claro que o preço do produto importado ainda é um problema, mas a Anvisa já está trabalhando na regulamentação para permitir a plantação da Cannabis para a produção de medicamentos, o que é permitido por Lei. Isso sem dúvida vai baratear e facilitar o acesso.
Perfil: Jarbas Barbosa da Silva Júnior é médico pela Universidade Federal de Pernambuco (1981), especializado em Saúde Pública (1983) e em Epidemiologia (1988) pela Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP/Fiocruz. É doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e desde julho de 2015 é Diretor-Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
Com mais agilidade na análise dos registros e um ambiente regulatório mais favorável à pesquisa clínica, Anvisa mostra que avançou e se prepara para novos tempos