À frente da divisão de pesquisa experimental e translacional do Instituto Nacional do Câncer (INCA), o médico João Viola (foto) reflete sobre o cenário da pesquisa em câncer e os desafios da assistência.
Onconews: Pelo menos duas importantes publicações, da FDA e da Task Force europeia, fizeram recomendações para estudos com inibidores de checkpoint imune. Qual a sua opinião?
João Paulo Viola: Em qualquer terapia nova, temos que ter cautela. Os resultados iniciais podem ser surpreendentes, mas com o tempo a gente começa a ver que algumas precauções devem ser tomadas. Isso é absolutamente normal. Não existe a menor dúvida de que os inibidores de checkpoint imune representam um ganho enorme para a oncologia e vários pacientes têm sido beneficiados. No entanto, com o maior número de pacientes tratados e a maior experiência acumulada, começam a surgir questões. Não são todos os pacientes que se beneficiam e não são todos os tipos tumorais. Então, precisamos conhecer mais sobre essas imunoterapias, assim como precisamos de mais tempo para que esse conhecimento acumulado traga respostas a questões ainda inquietantes. Não sabemos, por exemplo, por quanto tempo deve ser mantido esse tratamento imune. E o paciente que recai, recebe novamente o mesmo inibidor de checkpoint? E as combinações, quando indicar? Em muitos casos ainda existem dúvidas se o paciente se beneficia com um agente único ou se a combinação traz resultados superiores. Tudo isso está em aberto. Vejo que uma das questões mais agudas é saber se o paciente está curado ou se vai transcorrer um tempo até a recaída. Só o tempo vai mostrar.
Por falar de questões em aberto, e o panorama do câncer no Brasil? A literatura mostra que cerca de 30% de pacientes com câncer de pulmão têm expressão de PD-L1 ≥ 50%. O estudo do GBOT e a experiência de Barretos mostram 17%. Como aplicar os dados internacionais à nossa realidade?
Não são todos os pacientes que têm alta expressão de PD-L1. Essa é uma lição que já aprendemos. Muitas vezes o tratamento é iniciado às escuras, sem avaliar o biomarcador o que é evidentemente um problema. Para entender as diferenças, precisamos ter estudos brasileiros, estudos multicêntricos e abrangentes, para não ficar simplesmente reproduzindo aqui os dados internacionais. O Brasil é um país de muitas particularidades, inclusive regionais, sabemos que não é um país só. O paciente do Sul pode ser geneticamente diferente do paciente do Norte e Nordeste e isso tem implicações profundas no diagnóstico e tratamento. Nós ainda não conhecemos as diferenças, não sabemos, por exemplo, se existem variações regionais na expressão de PD-L1. Enquanto não fizermos estudos brasileiros não vamos conhecer essa realidade. Não dá mais para ficar olhando o dado internacional sem conhecer o nosso cenário.
Por que fazemos pouca pesquisa, é cultura institucional, é entrave do ambiente regulatório, qual a barreira?
Não é mais cultural. Hoje, estamos bem conscientes da importância de se fazer pesquisa brasileira. Temos instituições extremamente sólidas, com massa crítica de pesquisadores, temos médicos que são plenamente capazes de conduzir estudos com competência. Então, o problema não é a cultura institucional, mas existem sim barreiras importantes, a começar do baixíssimo investimento dedicado à Ciência no Brasil. Um estudo de base populacional requer um volume de investimento significativo, mas que precisa ser feito. Quem financia? Nós não temos fôlego financeiro para fazer pesquisa desse porte e esse é o primeiro ponto: o baixo investimento. Infelizmente, o investimento em Ciência caiu muito nos últimos anos. Depois, vem o ambiente regulatório. É um ambiente que precisa, evidentemente, de uma análise ética, precisa ser rigoroso, precisa ter critério, mas também tem que ter agilidade. O Brasil perde competitividade no cenário internacional da pesquisa porque fica esperando seis meses, um ano pela aprovação de um estudo. Isso não pode acontecer. A burocracia envolvendo insumos é outro ponto, porque a grande maioria do nosso parque de pesquisa depende muito de insumos importados. Se você tiver que importar o anticorpo PD-L1, ou o anti CTLA-4, por exemplo, vai demorar meses, o que é impensável. Então, quando você soma todas essas dificuldades, o resultado é um ambiente que não favorece a pesquisa e inovação no Brasil.
Como avançar com uma agenda positiva?
Isso tem que partir de uma agenda de Estado, como política de Estado. Investir não apenas no aspecto financeiro, mas investir em um ambiente regulatório mais favorável, o que implica vontade política de mudar leis, de flexibilizar importações e garantir celeridade às análises regulatórias. Isso é fundamental não apenas para uma mudança de cultura institucional, mas para mudar uma cultura de Estado. Não temos a menor dúvida de que conhecimento é um diferencial estratégico. Quando a gente olha para países que se desenvolveram em cima de uma base sólida de ciência e tecnologia, fica claro o valor desse patrimônio. É um patrimônio que precisamos construir, porque sem isso não vamos chegar a lugar nenhum. Sem uma agenda que favoreça a Ciência, ficaremos sempre dependentes de outras nações, importando conhecimento. O investimento em ciência, tecnologia e inovação deve ser encarado como política de Estado, independente de partido político ou de governo. É um pilar que está ali, e não vai mais importar se entrou um governo progressista ou conservador.
Por falar em política de Estado, qual a sua análise sobre 30 anos do SUS?
Se você pensar em um país continental como o Brasil, vai ver que é um desafio enorme fazer saúde pública. Os desafios estão aí, mas evoluímos. Quando você olha para a Oncologia e o cenário do câncer, é uma doença de alta complexidade e grande impacto na população. Hoje, o câncer é a segunda causa de morte e projeções indicam que vai se tornar a primeira causa de morte na população brasileira em 20 anos. Isso precisa ser visto como um grave problema de saúde pública, portanto precisa ser visto integralmente, sem separar o que é SUS e não-SUS. É resultado do envelhecimento populacional e está claro que é preciso agir fortemente na prevenção. Tivemos a política antitabaco, que é um marco, tivemos a incorporação da vacina de HPV para meninos e meninas, outro avanço importante, mas temos sem dúvida alguma desafios gigantescos pela frente. O Brasil ainda é uma ‘Belíndia’, com um pé na Bélgica e outro na Índia, com todas as dificuldades que marcam essa realidade carregada de contrastes, com áreas de desenvolvimento e áreas de extrema pobreza. Isso tem tudo a ver com o panorama do câncer no Brasil, porque temos tumores associados ao desenvolvimento, mas temos também tumores com a marca do subdesenvolvimento. E agora? Temos que lidar com essas diferentes realidades ao mesmo tempo. Isso ilustra a complexidade que se coloca ao Sistema Único de Saúde. Outra questão fundamental: temos que dar acesso. Como podemos garantir à população o acesso à prevenção primária, à prevenção secundária para a detecção precoce, para realmente melhorar nossas taxas de cura? São questões urgentes. Fortalecer a atenção primária, pensar estratégias de rastreamento regionalizadas, estabelecer políticas que possam maximizar os recursos, que são limitados e precisam ser aplicados com racionalidade e planejamento, tudo isso precisa ser discutido. Hoje, temos que dar a nossa população os tratamentos básicos, com quimioterapias que já existem, mas novos tratamentos estão surgindo e aumentam enormemente os custos dos sistemas de saúde. O acesso é novamente um ponto central. Mas se muitas vezes falamos de brasileiros que não têm acesso ao básico, não vai ser fácil conseguir dar a nossa população acesso a tanta inovação. São os desafios do nosso tempo.
Como anda a área de pesquisa no INCA?
A pesquisa no INCA é muito bem fundamentada. Temos uma coordenação, com diferentes linhas, com pesquisa básica, translacional, clínica, epidemiológica. Isso tem uma relevância muito grande no Brasil atualmente. Temos pesquisadores que se debruçam sobre várias questões, seja na parte genética, na biologia molecular, em imunologia. O grande desafio é conseguir implantar esse conhecimento adquirido no ambiente de assistência. É importante dizer que temos implantado, por exemplo, o aconselhamento de oncogenética, que trabalha em cima de mutações específicas de alguns tumores, como mama/ovário e colorretal. Temos avançado também no desenvolvimento de biomarcadores em determinadas vias de sinalização, como BRAF e KRAS, mas muitas vezes é difícil colocar essa inovação na rede de assistência. Temos o INCA como uma ilha de excelência dentro do SUS, mas expandir os avanços para todo o SUS ainda é um desafio muito grande.
Barretos anunciou uma parceria para oferecer imuno anti PD-1 a pacientes selecionados, com melanoma e pulmão. Isso é replicável na sua instituição, como vê essa iniciativa?
A iniciativa é louvável, porque chama toda a rede a pensar sobre o assunto. O acordo feito pelo Hospital de Câncer de Barretos envolve ainda um estrato pequeno de pacientes, que passa a ter acesso a essa imunoterapia. A grande reflexão aqui é sobre iniciativas isoladas dentro de uma rede de assistência. O ideal é que isso estivesse sendo discutido com toda a rede. O desafio é dar acesso a todos e não dar acesso a poucos. É preciso pensar saúde com equidade. Isso é complexo, implica inclusive refletir se não temos deslocado demais a ênfase para tratamentos sistêmicos, muitas vezes às custas de recursos que poderiam ser empregados na prevenção. Por isso é que pensar saúde tem que ser uma política de Estado. Não dá para abrir espaço a voluntarismos, a iniciativas isoladas. Hoje, é fácil ceder à tentação de usar o que está na moda, às vezes abrindo mão daquela evidência já consagrada.
Isso é ânsia de pesquisador?
Sinceramente acho que não. Eu sou pesquisador de bancada, trabalho há muito tempo nisso. O pesquisador não tem essa ânsia, ele sabe que ciência precisa de tempo. Mas o médico que está ali na frente do paciente, ele sim muitas vezes tem a ânsia de tirar das pesquisas conclusões que ainda são prematuras. O resultado de uma pesquisa leva tempo, reflete um trabalho de anos. Mas o médico se confronta com a necessidade de dar respostas e temos visto essa pressa em transportar resultados da pesquisa para a assistência. Em pesquisa não há atalho. Toda vez que se tentou um atalho, não deu certo. Então, de novo, não vejo espaço para decisões isoladas. Decisões monocráticas estão na moda, mas as decisões devem ser fundamentadas e amparadas por um colegiado. Na saúde, na pesquisa e na assistência, esse é o caminho.
PERFIL: João Paulo de Biaso Viola é médico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Biologia Parasitária pela Fiocruz e Doutor em Biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é chefe da Divisão de Pesquisa Experimental e Translacional do INCA e membro do conselho científico da IARC (International Agency for Reasearch on Cancer)