Em entrevista, o oncologista Auro del Giglio (foto) discute questões que estão na agenda da oncologia mundial e aponta caminhos para ampliar acesso a novas tecnologias no Sistema Único de Saúde.
O oncologista Auro del Giglio (foto) tem uma produção de fôlego. Ele já publicou 262 artigos completos em periódicos nacionais e internacionais, escreveu 62 capítulos de livros e tem 7 publicados. O especialista também é responsável por formar novas gerações de oncologistas e mantém em dia a paixão pela pesquisa e assistência, o que o projeta como nome de relevo na oncologia brasileira. Em uma tarde de final de verão, ele nos recebe para uma entrevista em São Paulo e mostra que além do encanto pelas ciências médicas é também um humanista, que gosta de filosofia e do pensamento reflexivo. Grata surpresa. A seguir, um pouco do olhar de del Giglio sobre temas que vão da inovação ao desafio do acesso.
Onconews: Conflito de interesses na oncologia, qual a sua visão pessoal?
Auro del Giglio: É um assunto muito sério. Hoje está mais regulado, mas o problema está aí. Eu, por exemplo, não recebo representantes no consultório, sempre em lugar público, porque não gosto de conflito de interesses. Eu não falo para nenhuma companhia farmacêutica e sempre tive essa postura. Você não vai me ver falando nada para ninguém, em meeting algum. Eu só falo se for uso científico. Essa é uma postura pessoal, acho que sou até um pouco radical, porque realmente me desagrada muito a pressão que as companhias fazem. Eu já fui convidado para fazer parte do board de guidelines e ali havia pessoas pagas pela indústria para ter certeza de que tal remédio entraria nas recomendações. Isso é real, isso existe. Marcia Angell, que foi editora-chefe da New England, escreveu um livro denso sobre isso. É terrível o que ela descreve no livro. Você lê e fica com medo, e é para ter medo mesmo, porque as companhias farmacêuticas têm mil artifícios. Não dá para negar que a indústria faz a carreira de muita gente, ela dá os meetings, dá até os slides da apresentação, dá recursos financeiros, enfim, constrói a carreira de um médico. Esse tipo de comercialização do conhecimento é muito preocupante, porque isso distorce. Eu nunca vou a nenhum meeting das farmacêuticas, em lançamento, nada disso. Eu só vou a congresso internacional, porque ainda fica mais perto da neutralidade, mesmo que seja comprado - porque todo mundo sabe que a ASCO, por exemplo, é totalmente patrocinada. O pior de tudo é perceber que mesmo a evidência que todo mundo preconiza, ela é comprada. Qual é a pirâmide? Nível 1, meta-análise, estudos randomizados e por aí vai. Então, um case report não custa nada, a gente faz aqui com os residentes, submete, vê o nome publicado na revista e é muito legal. Quanto custa um retrospectivo? Quase nada, todo mundo faz na faixa, como muitas monografias de final de residência. Mas quando você entra em um estudo de fase I, de fase II, aí custa milhões de dólares. A força da evidência é inversamente proporcional em termos de custo, é uma pirâmide inversa. Então, o próprio sistema de valoração de evidência, ele é mercenário.
E o desafio do acesso à inovação?
Eu sou um adepto da filosofia de mercado. Isso vai ter que se adequar, os custos tendem a diminuir, porque ninguém vai conseguir pagar, as farmacêuticas não vão conseguir vender e por si só o mercado vai equalizar essa situação, é uma questão de tempo. A distorção nós vamos evitar aprimorando a indicação. Vamos ter uma trivialização da tecnologia e isso vai se refletir nos custos. Possivelmente, os próximos pesquisadores de CAR T- Cells vão ter outro patamar de custos de desenvolvimento, porque alguém hoje já apontou o caminho para essa tecnologia. Outro fator fundamental é a competição. Mas a verdade é que vai haver sempre a iniquidade na assistência e aquele menos favorecido vai sempre estar mais distante dessa inovação terapêutica. É uma infelicidade e uma realidade histórica. Hoje, o mundo inteiro se confronta com isso e busca soluções. A iniciativa da Nice com o bortezomibe é um caminho. O Estado vai pagar por aquilo que funciona – e pronto. Se não funcionar, não paga. É um novo critério, você reduz a incerteza com essa responsabilidade compartilhada. Realmente acho que temos que avançar nessa direção, em busca também de modelos mais inovadores na gestão da saúde.
O seu grupo desenvolveu uma assinatura gênica em câncer de mama, que pode ampliar acesso aos testes moleculares. Como está isso?
Estamos validando esse painel molecular através de uma bolsa da Fapesp e quando isso acontecer, vamos ter a nossa versão do oncotype por cerca de mil reais. Isso abre a oportunidade de oferecer às pacientes do SUS um teste de valor prognóstico que pode evitar uma quimioterapia desnecessária. Mas você não vê um investimento proativo nisso. Quem está investindo? Na população brasileira, especialmente no contexto do Sistema Único de Saúde, a aplicabilidade destes testes moleculares de uso comercial é limitada, principalmente pelo alto custo. O teste molecular de 21 genes foi desenvolvido e padronizado na Faculdade de Medicina da Fundação ABC. Os resultados preliminares já foram publicados. Estima-se que, ao se evitar ministrar quimioterapia sistêmica para mulheres identificadas como de baixo risco pela assinatura molecular que está sendo validada, poderemos justificar a implantação deste teste na rotina de cuidados desta população. Assim, minorando os custos do teste molecular e subtraindo os custos da quimioterapia que teria sido dada às mulheres de baixo risco, projetamos que o Sistema de Único de Saúde poderá economizar recursos e implementar tecnologia de ponta para cuidado de pacientes com câncer de mama. Será que a exemplo dos medicamentos biossimilares, não chegou também o tempo de termos testes moleculares genéricos?
E o futuro?
Acho que imunoterapia com certeza vai ter seu papel, a terapia-alvo igualmente vai ter papel. A quimioterapia eu sempre disse que um dia vai acabar, mas ela pode até ser coadjuvante, ao lado da terapia-alvo. Hoje, por exemplo, nós já tratamos Leucemia mieloide aguda com venetoclax, um inibidor da proteína BCL-2, com a quimioterapia, porque a quimioterapia aumenta a apoptose. É como o efeito abscopal da radioterapia em associação com imuno. É um tratamento antigo que potencializa o efeito de uma terapia-alvo ou de uma quimioterapia. Acredito que isso vai progredir muito e que o futuro vai ser uma conjugação de várias ferramentas terapêuticas. A medicina vai sempre querer explorar, partir para novas conquistas. Perdíamos pessoas para infecções que antes eram devastadoras, hoje não perdemos mais; perdíamos para as corionariopatias, hoje perdemos muito menos, e a tendência é que a gente também vença a batalha contra o câncer. No futuro, quando o manejo do câncer for como uma doença crônica, vamos ter que nos preocupar com os sobreviventes e lidar com todas as sequelas e consequências disso. A medicina até hoje se baseou no paradigma anatômico. Vassarius e tantos outros decifraram a estrutura do corpo humano e a partir disso institui-se o paradigma anatômico. Agora, depois de muitos séculos, estamos em outro paradigma. Todas aquelas divisões que secularmente estruturaram a medicina, não vão mais fazer sentido. Chegamos ao DNA. Agora, vamos tratar por outros métodos e essas divisões anteriores serão descaracterizadas, o que já começa a acontecer. Hoje, eu dou imatinibe para GIST, que é um sarcoma, e para leucemia, que é uma doença oncohematológica.
Gostaria de saber das suas pesquisas com plantas brasileiras.
Fizemos um estudo avaliando extrato de guaraná em pó em 80 pacientes com câncer de mama em tratamento com quimioterapia. Os dados do nosso grupo já foram publicados e mostram que o guaraná foi muito eficaz no controle da fadiga, possivelmente porque atua na expressão de mediadores inflamatórios. Desenvolvemos um extrato padronizado, que evidentemente não é patenteável, porque não isolamos um princípio ativo reprodutível, mas é uma opção promissora para um contexto como o nosso. Temos um fruto brasileiro, de fácil acesso e de baixo custo, que pode ser usado para diminuir a fadiga em pacientes de câncer e tem um impacto na sua qualidade de vida. Isso é a junção do humanismo com a antropologia médica, porque algumas plantas já são conhecidas por suas propriedades medicinais. É o caso da unha de gato, que pesquisamos em 51 pacientes com câncer avançado, também para controle de fadiga. Os pacientes receberam pílulas com o extrato da planta durante dois meses, 3 vezes ao dia, e realmente houve melhora no sintoma e na qualidade de vida. A unha de gato já é usada em doenças inflamatórias e o nosso estudo mostrou que pode ajudar o paciente de câncer. Para a redução de náusea, pesquisamos o gengibre, também promissor, e em breve vamos publicar esses resultados.
Perfil: Auro del Giglio é médico formado pela FMUSP, com especialização em oncologia e hematologia no MD Anderson Cancer Center e Baylor College of Medicine em Houston, Texas. É professor titular de hematologia e oncologia da FMABC, coordenador do Serviço de Oncologia Clínica do IBCC e do Hospital do Coração (HCOR), em São Paulo.