Em entrevista exclusiva, o médico Riad Younes (foto), Diretor Geral do Centro de Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, fala das novas fronteiras no diagnóstico e tratamento do câncer de pulmão.
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Onconews: O que considera um marco no tratamento do câncer de pulmão?
Riad Younes: A obrigatoriedade de estudos prospectivos e randomizados para tomar uma decisão foi uma mudança brutal. Até isso se tornar padrão, tudo era feito no experimentalismo. A minha experiência é de 50 casos, a minha é de 100. Na hora que vem a obrigatoriedade da evidência, que as próprias autoridades exigem que sejam feitos estudos randomizados, as coisas começaram a mudar. Em algumas áreas isso foi muito rápido; em outras mais devagar. Agora, fazemos videocirurgia para operar câncer de pulmão. Em 1994, tivemos o primeiro grande estudo mostrando que videocirurgia é aplicável em câncer de pulmão. Foi um estudo de um americano chamado Mack. Mas o primeiro estudo randomizado prospectivo demonstrando a real vantagem de operar por vídeo só foi publicado agora em junho. São 22 anos. Isso virou rotina mundial sem nenhum estudo prospectivo. A única prova que existe é que a videotoracoscopia reduz significativamente a dor nas primeiras 24 horas, depois é tudo igual. Então, se criou um sistema onde o empirismo era a lei. Com os grandes estudos randomizados, a medicina vai remontar o tratamento do câncer. Hoje a arte no tratamento do câncer de pulmão é a seleção. O que vai tratar o doente não é o remédio novo, nem a técnica cirúrgica nova, mas a estratégia orientada pela seleção. Essa é a arte da medicina personalizada.
Então esse foi o maior avanço em mais de três décadas?
Isso trouxe a percepção de qualidade, a qualidade do dado, da estratégia, passamos a nos preocupar com estudos randomizados. Hoje nós temos uma Anvisa que também exige estudos randomizados. O oncologista, entre diferentes especialistas, é aquele que fala maciçamente sobre o valor da evidência. Com a análise crítica dos dados fica muito claro estabelecer o nível de evidência, mas essa é uma preocupação mais recente. Não se falava nisso quando eu estava no Memorial, por exemplo. As coisas mudaram.
Os resultados de sobrevida mostram que a terapia personalizada vale à pena?
Tem um estudo interessante, de dezembro de 2014, feito por um consórcio de pesquisadores, o primeiro autor é Mark Kris, do Memorial. Eles consideraram todos os pacientes testados para alguma alteração molecular tratados com o medicamento-alvo e no outro braço pacientes com adenocarcinoma de pulmão que não tinham sido testados para nenhuma mutação e receberam quimioterapia. A sobrevida mediana no grupo tratado com quimioterapia foi ao redor de 10 meses, 11 meses, melhor que os 6 meses do passado, mas ainda muito limitada. No grupo tratado com alvos terapêuticos, a sobrevida foi de 4 anos em 25% dos pacientes. Sabe o que é isso? É muita gente! O impacto é inacreditável. Agora temos outro salto, que é a imunoterapia. Mas adianta o doente que não tem mutação ir ao juiz e pedir o remédio por lei? Não, não vai funcionar e muitas vezes tira de alguém que poderia se beneficiar. Está muito claro na cabeça de todo mundo que é preciso escolher muito bem, porque os remédios estão caríssimos. Não existe nada por menos de 100 mil, 150 mil dólares/ano.
Essa inovação toda mudou a relação do médico com seu paciente?
A conversa hoje de um cirurgião torácico com seu paciente não tem nada a ver com aquilo que a gente fazia 10 anos atrás. Antes ainda, o que você não conseguia tirar cirurgicamente estava condenado, sem solução. Hoje não é mais isso. Para tumores localmente avançados praticamente não se opera mais ninguém, porque radio e quimioterapia funcionam absurdamente melhor. A Europa não opera mais tumor localmente avançado, porque na hora em que randomizaram cirurgia e quimioterapia versus radio e quimioterapia não conseguiram perceber a diferença. Hoje, a relação com o paciente mudou, para o bem e para o mal. Temos uma crença total na tecnologia, quase transformada em religião na nossa sociedade. A gente acredita piamente que o PET Scan é fabuloso, acredita mesmo. Aí você vai lá com PET Scan e o que você visualiza é um tumor localizado. Então você leva o doente para o centro cirúrgico e começa a ver micrometástases que você não detectou no exame. É desastroso. Naquele momento, você sabe que a cirurgia não vai ter impacto algum na vida daquela pessoa. E você tem que lidar com esse paciente e sua família. Hoje é mais incomum operar e achar micronódulos – não por causa do PET, que o PET não vê, mas porque a tomografia ficou muito precisa. Mas quando se percebe esse cenário, é realmente desastroso. O paciente tinha a expectativa de operar e pronto, acabava o assunto. Só que isso não aconteceu. A possibilidade de cura, que já não é das mais gigantes do mundo em câncer de pulmão, despenca para um terço de onde ela estava. O doente fica arrasado. São casos que acontecem, casos difíceis. Imagine isso em um paciente jovem. Quando você olha a quantidade de casos de câncer cada vez mais precoces como temos visto hoje em dia, de pulmão também, há situações dramáticas. Imagine essa situação em um paciente de 20 anos, 30 anos. O lado bonito disso tudo é que conseguimos provar que se você detecta precocemente o câncer de pulmão você aumenta as chances de sobrevida a longo prazo.
São evidências em favor do rastreamento?
Exatamente. Isso é recente, de 3 ou 4 anos para cá. O aparelho estava lá, mas não tinha prova nenhuma. Demorou cerca de 30 a 40 anos para demonstrar isso e agora está provado. A tomografia realmente melhorou a mortalidade por câncer de pulmão. Então, o bonito é ver que hoje semanalmente eu opero alguém com um tumor de 3 milímetros, 4 milímetros. Nesses casos, a probabilidade de nunca mais ver essa doença pela frente é astronômica. Com a detecção precoce, podemos ter cada vez mais casos como esses. Como política nacional, imagine o impacto na saúde da população. Vai ser como o Papanicolaou para colo do útero. Temos hoje que falar de boca cheia que o diagnóstico precoce de câncer de pulmão é uma possibilidade.
Deveria ser uma recomendação de rotina?
Quando se faz isso como autoridade nacional, a população inteira se beneficia, isso está provado. Se você é cardiologista, por exemplo, e o seu doente vem para um check up, você tem essa responsabilidade. O paciente é fumante crônico e o médico muitas vezes pede aquela bateria de exames e deixa de pedir uma tomografia do pulmão. Ano após ano. Depois de um tempo, esse doente aparece no consultório de um cirurgião torácico com um tumor desse tamanho. Poxa o senhor não procurou um médico? Vou todo ano, doutor, faço meu check up todo ano. E agora? Ir até a casa do indivíduo e buscá-lo para fazer uma tomografia é papel do governo, não é do médico, mas se o doente vai ao seu consultório e você não pede a tomografia de pulmão, que já é recomendada, aí acho que é muito otimismo. Todo mundo na faixa de 50 anos, 55 anos de idade deveria fazer. Você pede um, depois acompanha a cada ano e meio. Depois de 15 anos, se tudo está bem, não precisa mais pedir o exame.
E a epidemiologia do câncer de pulmão no Brasil, somos mesmo diferentes?
Em um dos raríssimos momentos da pesquisa brasileira, um estudo recente mostrou a prevalência de EGFR em câncer de pulmão no Brasil. É um estudo do Gil, publicado um ano e meio atrás. Se você olha o número de pacientes com mutação EGFR é assustador, muito maior que o americano. Ficamos na posição intermediária entre Estados Unidos e Japão, onde a mutação EGFR em pulmão é muito elevada. Será que nosso dado está errado, que a gente não mede bem? O estudo só conseguiu ser publicado quando saiu um trabalho do Peru, mostrando um número ainda maior, que quase encosta no Japão. Então, você não pode desconsiderar essas diferenças. Todo ano o congresso da ASCO fala de farmacogenética. O doente que recebe um inibidor de tirosina-quinase tem uma resposta no Japão, outra aqui e eles têm complicações que nós não temos, como a pneumonite, por exemplo.
A abordagem multidisciplinar faz a diferença na vida do paciente?
Quando a gente volta um passo atrás, vê que não é uma droga ou uma conduta isolada que vai ajudar o paciente com câncer de pulmão, mas toda uma estratégia. Esse espírito eu aprendi no Memorial. Eles sentam todos ao mesmo tempo para discutir o que pode ser feito por aquele paciente, criam uma estratégia e vão atrás dela. Qual a vantagem disso? Primeiro, sentam todos para conversar. Depois, eles têm uma base de dados para análise. Se fizemos assim e não deu certo, vamos melhorar. E aqui? Aqui é com base em uma experiência que não está sistematizada, organizada. Se você não publica seus números, você não tem nada. Você tem que checar resultados. Nos Estados Unidos eles checam resultados o tempo todo. Aqui, como não criamos nossos números, nos apoiamos nos dados deles. Quando voltei ao Brasil, em julho de 1990, recebi um convite do Brentani e fui para o A.C. Camargo assumir a cirurgia torácica. No dia seguinte, todo doente de câncer de pulmão do hospital ia parar no meu departamento, fosse cirurgia ou quimioterapia. Não tinha nenhum oncologista clínico. Eu vinha do Memorial, nunca tinha visto um cirurgião prescrever quimioterapia. A partir daí é que trouxemos um oncologista, naquela época o Artur Katz, e o A.C. Camargo começou a estruturar o time da oncologia clínica, mas até hoje tem cirurgião prescrevendo quimioterapia por aí, sem nunca ter feito clínica médica. Esse modelo de você sentar e dialogar para chegar ao melhor para o paciente, isso você não aprende aqui. A primeira reunião multidisciplinar do A.C. Camargo nós implantamos no departamento de tórax, porque também não existia, e aos poucos o Brentani foi adotando essa filosofia. No Brasil, até hoje a multidisciplinaridade é um desafio e em muitos centros de câncer é só pró-forma.
Por que na pesquisa também não decolamos?
Aqui, infelizmente, as coisas ainda são muito amadoras. Você certamente percebe que 99% das referências citadas no Brasil vêm de fora, de estudos internacionais. Aqui o que se faz em pesquisa é muito pouco, quase nada, e isso me deixa muito triste. Em câncer de pulmão, eu tenho que ouvir do Professor Rosell, de Barcelona, como fazer em tal situação. Barcelona inteira cabe dentro do Hospital das Clínicas, como eles podem ditar para nós como fazer? Somos um país de mais de 220 milhões e não criamos nada? Temos a Faculdade de Medicina da USP, que está aí há 100 anos. Como pode a Faculdade de Medicina da USP não ter impacto nenhum sobre nada, a não ser uma ou outra doença tropical ou parasitária? A cabeça das pessoas é a mesma em qualquer lugar do mundo. Eles saem daqui e vão para os Estados Unidos, produzem maravilhas, aqui não produzem nada. Por que? Porque essa é uma decisão de sociedade. A gente aqui está muito feliz em copiar as coisas dos outros. A coisa mais brilhante que a gente faz aqui é dizer de um remédio que foi aprovado pelo FDA. E todo mundo fica encantado, porque se o americano toma, então vou tomar também. Esse é o nosso jeito de fazer as coisas. Eu falo para todo mundo que o meu hospital não é a Harvard, eu não sou da Harvard e meu paciente também não é. E agora? É tudo diferente e eu estou ainda no copy and paste.
O que o motivou pela carreira médica?
Eu estava aqui no Brasil, naquela fase em que você começa a pensar no que vai fazer na faculdade. Tinha acabado de chegar do Líbano, estava no segundo colegial e mesmo sem nenhuma referência próxima, sem nenhum médico na família, comecei a pensar na medicina. Coincidiu que nessa época o filho de um amigo do meu pai morreu de câncer, ainda muito jovem, e isso acendeu alguma coisinha. No final do segundo ano do colégio estava decidido a fazer medicina. No cursinho, fiquei encantado pela Física. Eu vinha de um colégio do Estado, onde ingressei como refugiado de guerra, e nunca tinha estudado aquilo. A Física foi minha segunda opção no vestibular, mas entrei em medicina e olhando para trás foi mesmo o melhor caminho.
Na faculdade, a aproximação com a pesquisa foi também um caminho acertado?
Veja como as coincidências acontecem. No primeiro ano da faculdade de medicina, aconteceu uma coisa muito curiosa. Um dia um colega de turma me pediu ajuda. Era uma reunião com o chefe do laboratório de pesquisa básica da USP. Ele não queria ir sozinho, pediu a minha companhia. Eu fui. O professor nos explicou como era o trabalho no laboratório dele e pediu que retornássemos em dois dias. Dois dias depois eu fui lá esperar o meu amigo, fiquei ali sentado, ele não apareceu. O pessoal me chamou, o professor precisava de uma mãozinha. O rapaz nunca mais voltou e eu acabei ficando no laboratório. Uma sorte incrível, que me permitiu contato com um dos pesquisadores mais brilhantes, o professor Maurício Rocha e Silva. Eles estavam começando uma linha de pesquisa em tratamento do choque hemorrágico e naquela época se pesquisava tudo em cachorros. Achei aquilo encantador e comecei a fazer pesquisa nessa área, aí não parei mais. A pesquisa parte de uma pergunta que você vai tentar responder. Não precisa fazer pesquisa para ganhar o Prêmio Nobel, nem para levar pessoas a Marte. Basta fazer uma pergunta, às vezes a partir de dúvidas muito pequenas dentro do nosso dia a dia de tratar o câncer. Foi graças à pesquisa que ainda na faculdade dei palestras em congressos internacionais, em toda parte do mundo.
Como foi da pesquisa para a cirurgia torácica?
Eu tive duas influências claras na minha vida. Primeiro, o cirurgião Frederico Aun, de uma habilidade incrível e de uma inteligência até irritante. Era um cirurgião cardiotorácico que depois foi para Boston estudar cirurgia endócrina e cirurgia em câncer de mama. Quando voltou, foi uma grande inspiração. Ele me chamava para ajudar nas cirurgias e como aluno comecei a ir nessa direção, cada vez mais interessado em cirurgia. Outra referência foi o professor Dário Birolini, que estava começando o laboratório de pesquisa quando fui estudar no prédio do Hospital das Clínicas. É um grande médico, um grande cientista, que já naquela época falava da importância da ética e da importância do cuidado com o paciente. Por essas coincidências da vida, os dois estavam ali. Foi quando tudo começou.
E o prêmio da sociedade americana de cirurgia torácica?
Essa história do choque hipovolêmico avançou muito. Conseguimos concentrar o tratamento em uma solução de 250ml e isso foi um impacto gigantesco no mundo inteiro. Ao invés de carregar três litros de soro para atender um paciente em choque hipovolêmico eu posso salvar 10 pessoas com a mesma quantidade. Mas ninguém sabia exatamente como funcionava essa solução tão concentrada. Aí alguém nos Estados Unidos achou que podia ser algum receptor no pulmão, na parte nervosa. Pronto. Eu queria denervar um pulmão. Uma década e meia antes o professor Frederico já fazia transplante de pulmão e fui até ele para saber como transplantar um lado – na verdade não exatamente transplantar, mas reimplantar. Denervar e reimplantar. Ele me ensinou e eu comecei a operar pulmão em cachorros. Começou a dar certo e o trabalho foi ficando muito interessante. Tínhamos um pulmão com nervo, outro sem nervo. Você usava a solução nos dois lados e a resposta era diferente. Então, provamos instantaneamente que o nervo pulmonar é importante. Foi isso que deflagrou tudo. O estudo foi publicado na Surgery e foi um sucesso, foi o que nos levou ao prêmio.
Também abriu as portas para o fellowship no Memorial?
Ao final do sexto ano de medicina resolvi escrever sobre os resultados da minha pesquisa e mandar o trabalho para o Congresso Brasileiro de Cirurgiões, no Rio de Janeiro, para concorrer ao prêmio nacional de cirurgia. O trabalho ficou entre os 10 finalistas e fui até lá apresentar os dados do meu estudo. Eu era um menino. Do meu lado, o outro concorrente era um catedrático, professor da USP. Na platéia, estava ali sentado o chefe do departamento de cirurgia do Memorial de Nova York, Murray Brenann, que veio para ver o professor e acabou assistindo também a minha apresentação. Ele era a maior autoridade naquele congresso e ficou interessado em entender o meu trabalho, veio falar comigo. Expliquei, detalhei os gráficos e ele acompanhou tudo com muito interesse. Ao final da conversa, me convidou para ir ao Memorial nas férias da residência. Lá fui eu. Durante 30 dias acompanhei cirurgias, visitas médicas, reunião daqui e dali. No final das férias, dr. Brennan me perguntou ‘Riad, você não quer ficar por aqui e tomar conta desse laboratório? ‘ Isso me trouxe a certeza de que a pesquisa era uma paixão, mas que eu tinha uma paixão ainda maior: eu sou médico, quero acabar a residência e ser cirurgião. Foi a minha resposta. Aí ele me convidou para voltar nas férias seguintes e desde então não tive mais férias na residência. Todo ano eu voltava ao Memorial. No final da residência, dr. Brennan voltou a me perguntar. ‘Agora acabou, você quer trabalhar aqui?’. Mas eu queria fazer a especialização, expliquei. Foi quando ele me disse que havia 12 vagas para o fellowship no departamento de cirurgia do Memorial, me convidou para mandar o currículo e fazer as provas. Passei. Fui um dos 12 naquele ano. Comecei a fazer o fellowship conectado com o laboratório de cirurgia torácica. Trabalhava 10 horas de um lado e mais cinco ou seis no laboratório. Por dois anos você simplesmente não dorme. A velocidade lá é astronômica, as coisas acontecem em outro ritmo.
O senhor viajou com o então presidente Lula para o Oriente Médio, onde foi realizado um trabalho importante na área da saúde. Pode nos contar um pouco dessa experiência?
Essa viagem foi muito interessante. O Brasil nunca olhou para o Oriente Médio. Desde D. Pedro até o Lula, nenhum outro rei, imperador ou presidente havia pisado em nenhum país árabe. E você não tem ideia de como foi emocionante a recepção que ele teve. Não porque ele é o Lula, mas porque era o presidente do Brasil. Ir do Brasil até essa região fez com que o país subisse um degrau instantâneo. Acho que foi uma estratégia absurdamente inteligente ir até lá. Quando você viaja para essa região, você percebe que não é tudo Dubai. O próprio Emirados Árabes, que é rico a transbordar, não é só Dubai. Está cheio de pobreza. Um lugar com muita gente rica, mas com grandes bolsões de pobreza, de desastres políticos, de refugiados. É uma região que tem muita miséria. Só indo para ver. Se vai como pessoa física, ninguém nem fala com você. Mas quando você vai em nome de um governo, é recebido pelo ministro, eles abrem as portas. Você vê coisas que nunca ouviu falar, nunca teve acesso, e percebe que existe uma semelhança muito grande com o Brasil de uma, duas décadas atrás. Se nós estamos atrasados 20 anos em relação aos Estados Unidos, eles estão atrasados 20 anos em relação à gente. E fica mais fácil encontrar soluções para problemas que já enfrentamos. Então eu voltava para cá, sentava com o Lula e outros ministros, e todos, sem exceção, concordavam em ajudar. Isso não é só benevolência. É bom para o Brasil. E é algo filantrópico, não governamental. Não saía um centavo do governo brasileiro. O dinheiro vinha de doadores brasileiros, não do Brasil. Mas tudo o que foi feito, quem entrega é o Brasil. É o embaixador, não sou eu ou outro doador. Ninguém aparece. Nós fizemos várias coisas nesse sentido, que elevaram muito o nome do nosso país.
Alguma iniciativa que o senhor gostaria de destacar?
Foram várias. Realizamos congressos, associações médicas com universidades, com hospitais privados. Trouxemos pessoal para treinar aqui no Brasil. Por exemplo, no Oriente Médio eles não têm transplante de fígado intervivos. Em nenhum lugar. E existe uma proporção fixa dos recém-nascidos que precisariam de transplantes de fígado por problemas congênitos. Morrem todos, 100%. A não ser que vá para a Europa ou Estados Unidos para fazer o procedimento, que custa em média U$ 500 mil nos EUA. Quem tem 500 mil dólares? É uma seleção cruel. Quem tem dinheiro vai fazer, quem não tem morre. Como temos aqui no Brasil dois grupos espetaculares, com uma das maiores experiências do mundo em transplante de fígado intervivos, o Hospital Sírio-Libanês e o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, nós oferecemos ajuda para montar um projeto, encontrar o equipamento mais barato para o centro cirúrgico, a UTI e assim por diante. O projeto também incluía a ida de cirurgiões para operar lá, e o treinamento dos cirurgiões deles no Brasil. Com isso, o custo por doente caiu para U$ 60 mil, ou seja, com um doente que ia para os Estados Unidos, conseguimos operar dez. E tivemos outros projetos semelhantes.
E em relação ao câncer, foi feito algum trabalho específico?
Eu contei a eles sobre a minha experiência, expliquei como trabalhar a questão do câncer, da prevenção ao tratamento, e nos coloquei à disposição para checar exames, discutir casos por teleconferência, enfim, fazer o que fosse necessário para ajudar. Fui ao Líbano, Tunísia, Síria, Egito, Argélia, Emirados, várias vezes para cada um desses países, para detectar o melhor local para instalar um Centro de Câncer. Eles têm um problema crônico com a radioterapia. No Líbano, por exemplo, só existe equipamento na capital. Então o paciente que está no interior, que não tem recursos, está com a saúde comprometida, ainda tem que viajar diversas vezes para Beirute para realizar o tratamento. Ou, se tiver dinheiro, ficar em Beirute durante esse período. O que a maioria da população acabava fazendo? Não se tratava. Então resolvemos montar um centro de radioterapia voltado para a população mais carente. Conseguimos terreno e construção com doadores de lá, e fui para a Alemanha negociar aparelhos de radioterapia que eram trocados, remanufaturados, e saíam por um preço mais em conta. Eu conseguia um aparelho de radioterapia bom por U$ 200 mil, aparelhos de ultrassom por U$ 5 mil dólares. Com U$ 300, 400 mil dólares, a gente conseguia montar um centro. Além disso, arrumamos doações para financiar o funcionamento por dois anos. Você não tem ideia do sucesso desse modelo. Nós fizemos algo muito diferente, que pouca gente faz. Quando o japonês vai para lá, por exemplo, ele oferece a mesma coisa. Só que exige que sejam comprados os aparelhos dele. O norte-americano, a mesma coisa. Nós fomos, montamos centros médicos, treinamos, viemos embora, sem cobrar um tostão sequer. E não vendemos nada. Parece que não é nada, mas é importante. Você começa a existir, eles passaram a nos olhar de uma maneira diferente, como um parceiro, e não um vendedor. Depois disso, a velocidade do crescimento do intercâmbio comercial entre o Brasil e esses países cresceu muito. Foi absurdo o salto.
E pessoalmente, o que ficou de mais significativo?
Acho que foi algo muito importante e de muito aprendizado. O Brasil me abriu todas as portas. Eu devo a alma ao Brasil, um país que me acolheu de uma forma inacreditável, que jamais vou esquecer. Sou brasileiro, e me orgulho absurdamente disso. Mas continuo sendo libanês também. Eu nasci lá, mas vim para cá ainda pequeno. Faço a minha parte filantrópica no Brasil, mas gostaria também de poder ajudar um pouquinho aqueles países. Agora, como existem muitos regimes corruptos, esse pouco eu queria que fosse bem feito. E esse trabalho continua. Dois anos atrás fizemos um projeto com os refugiados palestinos, que não têm ultrassom para grávidas e não conseguem controlar a glicemia dessas mulheres. Fizemos uma campanha e compramos aparelhos de ultrassom para esses refugiados, no mesmo esquema de tentar baratear o preço. Nossa campanha foi a que mais arrecadou dinheiro no mundo, com exceção das iniciativas governamentais. Nós também compramos um programa de computador que controla os prontuários, porque o refugiado não fica em um só lugar.
Para encerrar, gostaria que o senhor falasse um pouco sobre o modelo de atendimento integrativo que o senhor implantou no HAOC.
No Brasil, as pessoas confundem muito cuidados paliativos com cuidados da terminalidade. Por isso, no Centro Avançado de Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI), nós procuramos tirar a palavra ‘paliativos’, para evitar esse tipo de confusão. Qual é o meu interesse aqui? Eu quero que meu doente fique não somente curado, se possível, ou viva mais, mas também que ele volte à funcionalidade que para ele interessa. Essa é a minha meta. Quanto ele vai viver, quanto ele vai se curar, é claro que é fundamental. Só que a qualidade dessa sobrevida, isso me interessa tremendamente. E hoje os doentes vivem muito. E estão vivendo cada vez mais. Ficar esperando durante 4, 5 anos, até o paciente ficar em um estado miserável, para nos últimos dois meses começar a fazer cuidados paliativos, quando todo mundo desistiu, não faz sentido. Nossa meta é diferente. É fazer ele se adaptar à nova realidade e se aproximar da expectativa dele ao máximo. Às vezes a gente não consegue chegar lá. Mas queremos chegar ao máximo. Por exemplo, alguém que operou câncer de pulmão, parou de fumar e gostaria de correr a São Silvestre. Vamos trabalhar para que ele consiga. Isso faz parte do CATSMI. Eu quero que o doente volte à vida que ele gostaria de ter. Isso não é tratamento paliativo, não significa só tirar a dor. É adaptar ele à corrida, à natação, fazer com que ele consiga mexer o braço como fazia, todas essas coisas estão sendo levadas em consideração ao mesmo tempo. Uma grande vantagem é que o Dr. Ricardo Caponero e seu time estão aqui o tempo todo. Eles fazem parte da nossa reunião multidisciplinar todo dia, discutem cada caso e buscam oferecer o que existe de melhor na pesquisa e adaptar para cada caso específico. Nós não trouxemos o Ricardo para ele assinar o atestado de óbito dos doentes. Nunca consegui fazer com que os hospitais entendessem a importância e a necessidade de contar com alguém com a expertise dele, ou da Dra Ana Lucia Coradazzi, por exemplo, que também faz parte do CATSMI. Justamente porque a turma vê os cuidados paliativos como síntese da terminalidade. Esse é o primeiro hospital que entendeu o projeto. É um projeto caro para o hospital, mas que é muito bom para o paciente, não tenho dúvida.
Perfil - Riad Naim Younes é Diretor Geral do Centro de Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. É médico especialista em cirurgia torácica pela Faculdade de Medicina da USP, com Fellowship no Departamento de Cirurgia do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, em Nova Iorque.