Com uma das carreiras mais celebradas na oncologia, o cirurgião oncológico Marcos Moraes (foto), presidente do conselho de curadores da Fundação do Câncer, fala sobre questões que vão da judicialização da saúde ao impacto do custo das novas drogas oncológicas. O especialista defende a importância de revalorizar a relação médico-paciente e propõe um novo olhar sobre as prioridades em saúde.
Foto: Comunicação/Fundação do Câncer
Onconews: Como se deu a escolha pela medicina? Sempre foi uma vocação?
Marcos Moraes: Sou de uma família de poucos recursos, do interior de Alagoas. No segundo ano do ginasial ganhei uma bolsa para o colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, considerado na época o melhor do Brasil. Eu me preparei o tempo todo para engenharia, mas quando estava no segundo ano do científico comecei a ter dúvidas. Veio a ideia da medicina. Foi quando o orientador educacional me encaminhou para fazer um teste na Fundação Getúlio Vargas, em um Instituto que se chamava ISOP – Instituição de Seleção e Orientação Profissional. Após uma série de exames havia uma entrevista final com um psicólogo muito famoso na época, que me deu um conselho: se for o caso, perca um ano da sua vida. A escolha da profissão vai traçar o seu destino. Então, faça aquilo que você se preparou a vida toda, engenharia. Se por acaso você perceber que não é o que realmente quer, você muda para medicina. Foi o que aconteceu. Passei no vestibular para engenharia e logo larguei o curso. No ano seguinte entrei para medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde me formei.
E a cirurgia oncológica, foi paixão à primeira vista?
A escolha da especialidade não foi uma coisa fácil. Primeiro pensei em fazer pediatria, depois psicanálise e,por último, cirurgia. Quando acabei a residência em cirurgia geral meu plano era ir para Chicago fazer pós-graduação. Mas não havia um prazo fixado e resolvi ir primeiro para o interior de Alagoas, para exercer um pouco de ‘medicina da roça’. Foi uma experiência maravilhosa. Passei três anos sendo médico do interior, em cidades muito pequenas, com pessoas vivendo no campo. Fiquei encantando por poder exercer esse tipo de medicina, tratar pessoas realmente carentes, ver o resultado, conhecer a família. É algo que não vemos mais hoje em dia, quando existe uma dificuldade muito grande do médico estabelecer uma relação com o paciente, por uma série de razões. Depois desse período fui para Chicago, onde tive a oportunidade de ser aluno do professor Das Gupta, que era o chefe da cirurgia oncológica da universidade, uma pessoa realmente premiada na arte da cirurgia e com um conhecimento social e médico enorme. Foi ele quem me deu essa inspiração final para exercer a cirurgia oncológica. Eu fiz um ano de estágio em pesquisa, dois anos de cirurgia oncológica e voltei para o Brasil. Quando voltei estabeleci um vínculo com o Hospital de Ipanema, onde fiquei por cerca de cinco anos. Não era um hospital oncológico, mas um hospital de cirurgia geral, com um grupo de médicos muito bons. Era considerado um dos melhores hospitais de cirurgia gastroenterológica do país. Também fui convidado para dirigir o departamento de cirurgia do hospital da Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, onde pude formar um time de cirurgiões muito competente.
Como surgiu o convite para dirigir o Instituto Nacional do Câncer (INCA)? Foi um grande marco na carreira?
Foi um grande marco, com certeza. O convite surgiu a partir de um estudo que eu havia feito, o Programa Nacional de Controle do Câncer no Brasil. Foi um programa muito bom, reunimos pessoas bastante empenhadas, e em 1990 recebi o convite para dirigir o Instituto Nacional do Câncer. Era a oportunidade de colocar em prática aquele programa que tínhamos desenvolvido. Fiquei oito anos à frente do INCA, entre 1990 e 1998. Foi uma experiência muito boa. Nós trabalhávamos motivados, tínhamos um sistema de mérito e o saldo dessa experiência inicial foi muito positivo. A receita é trabalhar em grupo e motivar as pessoas.
O que ficou de mais significativo na sua gestão no INCA?
Ficou essa grande lição, de que é possível motivar instituições públicas no país a formar administradores de qualidade. Ao invés de ficar só reclamando, o que podemos fazer para melhorar o que temos? É preciso motivação e treinamento. Ao invés de substituir todo mundo, como é a regra do serviço público, vamos capacitar. Naquela época, o INCA tinha cerca de 3 mil funcionários e quase todos passaram por esse programa de qualificação administrativa. E isso realmente mudou muito a imagem do INCA e do serviço público.
O senhor viveu a época das cirurgias mutiladoras e hoje assiste à tendência das técnicas minimamente invasivas e cirurgias conservadoras. Como é acompanhar essa transição?
É um avanço muito importante, que necessita não apenas de novos equipamentos, mas também de treinar pessoas para operar esses instrumentos modernos e desafiadores. Acredito que o mais importante é o conceito de que é possível tratar com menos sequelas e mais eficácia se adotarmos caminhos mais simples, tanto na escolha dos métodos, dos novos equipamentos, como na definição do protocolo de novas drogas. É importante que a gente consiga ter drogas para diferentes tipos de tumores. É pouco provável que um dia apareça uma só droga para tratar todos os tipos de câncer. Mas vão aparecer, certamente, diferentes maneiras de encarar e entender melhor o mecanismo celular.
O senhor citou as novas drogas, que alimentam debates sobre o acesso e a judicialização. Como vê esse cenário?
O fenômeno da judicialização encarece muito a medicina, principalmente a oncológica. Por mais competente que seja um desembargador, um juiz de direito, um advogado, ele não é capaz de fazer uma análise adequada sobre eficácia, efeitos colaterais. Ele não tem conhecimento sobre quem pode e deve usar o medicamento, nem sobre os mecanismos que o estado usa para selecionar novas drogas. É preciso uma integração entre o juiz, as decisões e interpretações dele, e aquilo que o médico receitou. Todas as organizações oncológicas do mundo estão com problemas muito sérios em relação ao preço dessas drogas. A judicialização é mais um problema estratégico do que um problema de justiça. Sabemos que algumas drogas têm uma relação custo-benefício bastante eficaz e estão apontando o caminho através de estudos genéticos, de biologia celular, molecular, uma série de conhecimentos novos. Mas isso tem um apelo enorme também da indústria farmacêutica, que gasta muito na pesquisa de uma molécula muito promissora e acredita que liberar essa droga para o tratamento é uma coisa importante. Realmente existem muitas moléculas, muitas drogas que prometem ser eficazes, mas não são a solução dos problemas. Não é o mais caro, nem o mais barato que é melhor, e sim o mais eficaz e com menos danos para o paciente. Alguns tumores onde se gasta tradicionalmente 500 reais por mês, ao usar um anticorpo monoclonal esse custo passa para R$10 mil, R$15 mil reais por mês, com uma eficácia muito pequena. É claramente desproporcional o que se gasta com o que se ganha com a nova droga. É preciso estar atento. Várias medidas estão sendo tomadas pelas instituições de câncer do mundo todo, na tentativa de fazer com que juízes e legisladores tenham mais conhecimento do que isso representa antes de permitir o uso de uma droga 10 vezes mais cara, 100 vezes mais cara, sem grande diferença de eficácia. Isso desestrutura o orçamento financeiro de qualquer ministério, de qualquer instituição oncológica do mundo.
Uma alternativa é investir em prevenção, que inclusive ocupa lugar cativo no seu repertório. Quando e de que forma começou esse seu engajamento na luta antitabaco?
Quando começamos, na década de 1990 o Brasil tinha cerca de 38% da população fumante. Nos últimos 20, 30 anos esse número foi reduzido para cerca de 14%. Em alguns tipos de tumores podemos calcular com mais precisão o que o Brasil ganhou com essa mudança enorme nos nossos hábitos de vida com relação ao cigarro. O tabaco era o próprio exercício da função de diretor do Instituto Nacional do Câncer, um dos pilares traçados no Programa Nacional de Controle do Câncer. Tínhamos muita gente motivada e fazendo um trabalho muito bom. A minha oportunidade foi encontrar esse pessoal no INCA e nas ações anti-tabaco que já existiam, mas que não eram sistematicamente organizadas. Não é uma conquista de uma pessoa só, mas sim um trabalho de um grupo enorme interessado nisso. Eu tenho um orgulho muito grande de ser uma dessas pessoas. Outro exemplo bem-sucedido de controle do câncer no Brasil é a oncologia pediátrica. Antigamente, 70% a 80% das crianças com câncer não se curavam. Hoje 80% ficam completamente curadas, o que é uma conquista extraordinária. Assim como a questão do tabaco, um grupo de pessoas resolveu enfrentar o problema, ao invés de simplesmente reclamar que não tem verba. Vamos trabalhar com o que temos, que o resultado aparece.
Depois da luta anti-tabaco, o senhor acha que a luta pela nutrição saudável é a próxima onda?
Sem dúvida. Graças aos nossos maus hábitos de qualidade de vida temos hoje uma grande doença, que é a obesidade, um importante fator de risco para uma série de outras doenças. É preciso conscientizar a população desde cedo para promover uma mudança de comportamento. Nesse sentido temos algumas experiências muito interessantes. Temos um programa muito interessante onde as crianças que estão acabando a alfabetização na escola primária aprendem práticas que podem ser utilizadas para melhorar o futuro com relação a doenças.
E a humanização da assistência oncológica, continua como um desafio?
Uma área que ainda recebe pouca atenção é o paciente sem possibilidade de tratamento, no final da doença. Esse paciente precisa ser compreendido não como um paciente que vai receber drogas potentes para viver mais uma, duas semanas. Vários países já demonstraram que é possível, e melhor, tratar essas pessoas com afeto, com aproximação da família. A Inglaterra é um marco. No Brasil temos alguns exemplos de programas que estão começando em algumas instituições. O INCA tem uma unidade especializada para isso, com auxílio da Fundação do Câncer, que ensina e ajuda a família, o cuidador, a dar o suporte necessáriopara o paciente que está nos últimos dias de vida. É um tratamento de afeto. Esse sistema, cujo nome inglês é Hospice, são lugares dedicados a essa questão, de ensinar o paciente e a sua família a viver da melhor forma possível, utilizando o afeto e técnicas que aproximem o paciente dos seus familiares. Talvez também seja um caminho para voltarmos a ter uma medicina mais humanizada, voltada para o carinho, o cuidado, a aproximação. É importante tocar no paciente, cumprimentá-lo, ter tempo para sentar numa cadeira e conversar. Estamos tentando fazer isso no Brasil, temos um terreno destinado para isso. Mas o problema principal não é ter o terreno, e sim pessoas que possam trabalhar ali. É quase que um pecado falar em doença terminal hoje. Tratar uma doença terminal é também uma forma de demonstrar afeto, de juntar a família, dar o devido apoio. Esse programa que estamos desenvolvendo nessa unidade do INCA merece ser imitado, e várias instituições já estão começando a fazer isso no Brasil.
Que take home message gostaria de deixar à comunidade médica brasileira envolvida no tratamento oncológico?
Eu espero, sinceramente, que o médico volte a se reaproximar do paciente. Um bom exemplo disso é o Dráuzio Varella, um médico que serve de referência dessa volta ao paciente, de não aceitar novas drogas quando elas não são mais eficazes. Com relação ao paciente oncológico, dizer que não existe mais possibilidade terapêutica não significa que não há mais nada a fazer. Muito pelo contrário. É preciso aprender a deixar o indivíduo morrer da melhor forma possível, mais serena, com a família ao redor dele, como era na nossa infância. Eu me lembro da morte dos meus avós, todos nós ficamos à beira do leito. É um momento de integração da família, e o médico também precisa participar e trabalhar para que o paciente fique o mais confortável possível, tratando os sintomas, e não a doença, de modo eficaz. Isso é fundamental.