Estudo publicado na Nature Genetics identificou cerca de 200 mutações no DNA não-codificante que desempenham um papel funcional no câncer e poderiam representar um novo alvo terapêutico. Os especialistas André Marcio Murad e José Claudio Casali, diretores científicos do Personal - Laboratório de Genética Molecular de Precisão e coordenadores do GBOP - Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão comentam os achados.
Por André Marcio Murad e José Claudio Casali
Os cânceres humanos são fundamentalmente heterogêneos, com muitos subtipos distintos associados a diferenças nas características moleculares, celulares e clínicas. Para se obter uma visão sobre isto em toda a sua complexidade, projetos como o Atlas do Genoma do Câncer (TCGA) e o Consórcio Internacional do Genoma do Câncer (ICGC) usaram sequenciamento maciço paralelo de DNA para construir grandes catálogos de mutações somáticas em muitos tipos de tumores. Concentrando-se inicialmente nas regiões codificadoras de proteínas, descobriu-se que várias centenas de genes tinham uma mutação recorrente no câncer, algumas das quais poderiam constituir alvos terapêuticos.
Com as modernas técnicas de sequenciamento genômico, identificamos centenas de genes conhecidos que, quando mutados, claramente ajudam a impulsionar a formação e o crescimento do tumor. Quando as mutações ocorrem dentro dos genes, elas podem interromper a produção da proteína que o gene codifica, ou fazer com que uma versão defeituosa seja produzida. Para algumas dessas mutações genéticas relacionadas ao câncer já existem terapias que visam especificamente à mutação, inibindo assim o crescimento do tumor, o que denominamos de "oncologia personalizada" ou "oncologia de precisão".
A maior parte do genoma humano (98%) é composta de DNA, mas que na verdade não codifica genes que as células utilizam para construir proteínas. A grande maioria das mutações genéticas associadas ao câncer ocorre nessas regiões não-codificantes do genoma, mas não está claro como elas podem influenciar o desenvolvimento ou o crescimento do tumor. Neste importante estudo, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego e do Moores Cancer Center identificaram cerca de 200 mutações no DNA não-codificante que desempenham um papel funcional no câncer. Cada uma das mutações poderia representar um novo alvo na busca de drogas contra o câncer. Ideker e colaboradores se perguntaram sobre todas as outras mutações não-codificantes do câncer. Quase nenhum paciente com câncer desenvolve as mesmas mutações. Então, o que todas essas mutações estão fazendo? Eles são apenas um "barulho"? Ou eles são funcionais? E como eles diferem entre os pacientes?
Pesquisadores já haviam tentado encontrar uma resposta no TCGA, mas eles encontraram apenas uma mutação não-codificante que parecia ter um papel no câncer (no promotor do gene da transcriptase reversa da telomerase - TERT). As tentativas anteriores não conseguiam igualar mutações não-codificantes aos comportamentos das células cancerígenas.
Este estudo também utilizou os dados do TCGA, comparando as amostras de tumores de 930 pacientes com câncer a amostras de tecidos normais dos mesmos pacientes. Entretanto, além da análise integrativa de 930 genomas completos de tumores, seus transcriptomas correspondentes também foram analisados, identificando-se uma rede de 193 loci não codificantes, nos quais as mutações interrompem a expressão do gene alvo. Estes "eQTLs somáticos" (expressão quantitativa de loci) são frequentemente mutados em tecidos cancerígenos específicos, e a maioria pode ser validada em uma coorte independente de 3.382 tumores.
Depois de encontrar esta 193 mutações não-codificadoras que alteram a expressão gênica, a equipe testou três delas no laboratório. Eles replicaram a mutação não-codificante nas células e observaram as mudanças resultantes na expressão gênica.
Um exemplo que se destacou foi uma mutação não codificante que afeta um gene chamado DAAM1. A ativação DAAM1 torna as células tumorais mais agressivas e mais capazes de invadir os tecidos circundantes. Verificou-se também que a rede de eQTL somática é interrompida em 88% dos tumores, sugerindo um amplo impacto de mutações não-codificantes na biologia tumoral. Coletivamente, os loci não-codificantes convergem em um conjunto de vias centrais, permitindo uma classificação dos tumores em subtipos baseados em vias.
As próximas etapas da pesquisa serão a de combinar essas mutações não-codificantes com mutações de codificação e determinar assim se existem subtipos de tumores com um padrão comum de mutações codificadoras e não-codificadoras, com o objetivo de encontrar ações para essa informação, como se um paciente tem ou não um padrão de mutação específico que pode fornecer pistas diagnósticas ou prognósticas ou sugerir uma abordagem terapêutica individualizada.
Referência: A global transcriptional network connecting noncoding mutations to changes in tumor gene expression - Wei Zhang et al - Nature Geneticsvolume 50, pages613–620 (2018) - doi:10.1038/s41588-018-0091-2 https://www.nature.com/articles/s41588-018-0091-2