Os cirurgiões oncológicos Durval Renato Wohnrath, Pedro Ricardo Fernandes e Francisco Américo Fernandes Neto discutem os vieses em estudos comparativos de cirurgias oncológicas abdominais por acessos minimamente invasivos x abertos.
Por Durval Renato Wohnrath, Pedro Ricardo Fernandes e Francisco Américo Fernandes Neto
Não é sempre que existe uma clara e detalhada observação que alerte, em cada publicação, sobre os reais limites e indicações possíveis para cirurgias minimamente invasivas como, por exemplo, aquelas que devem ser indicadas para casos selecionados, menos avançados, mais eletivos, em cavidades com poucas aderências, etc.
Várias cirurgias oncológicas abdominais abertas não seriam plausíveis de serem, completamente, realizadas através de acesso minimamente invasivo e, por isso, estas deveriam ser, criteriosamente, selecionadas e excluídas do grupo comparativo. A comparação deveria ser, justamente, realizada com grupo que, muito provavelmente, poderia também ter sido submetido ao acesso minimamente invasivo a contento, evitando viés de seleção da concentração de casos de complexidade menor no grupo da cirurgia minimamente invasiva.
Em vários casos, com um pequeno acréscimo da dimensão total das incisões dos acessos minimamente invasivos, no que diz respeito à somatória da dimensão das incisões de remoção da peça e das introduções dos trocarters, pode se proceder a cirurgia na forma aberta com incisão reduzida ("minilaparotomia" ou quase isto), moderadamente invasiva e, relativamente, mais simples, rápida e econômica.
Muitas cirurgias abertas cometem um exagero desnecessário e, portanto, evitável, no tamanho e no local ou tipo da incisão, e também na manipulação intracavitária, seguindo o velho e falso adágio cirúrgico: “grandes incisões, grandes cirurgiões”.
Não existe uma prática padrão, homogênea e adequada de analgesias pós-operatórias (por bloqueios, parenterais, enterais, orais - preventivas, peremptórias ou terapêuticas) disseminada no cotidiano da maioria dos hospitais, e nem mesmo fisioterápica, fazendo com que as cirurgias abertas causem maiores repercussões evitáveis ou amenizáveis.
Algumas cirurgias minimamente invasivas apresentam resultados com menores sangramentos, pois normalmente são comparadas com cirurgias abertas sem o uso de pinças e grampeadores hemostáticos de alta tecnologia, dentre outros artifícios especiais mais utilizados nas cirurgias minimamente invasivas, mas que também podem e devem ser empregados nas cirurgias abertas.
Sangramentos podem parecer maiores em cirurgias abertas no cômputo geral de estudos comparativos, mas às vezes representam situações de complexidade maior e que não poderiam ser solucionadas pela via minimamente invasiva. Aliás, quando em complicações hemorrágicas importantes ou em outras intercorrências complexas durante cirurgia por acesso minimamente invasivo, habitualmente, ocorre a atropelada conversão para cirurgia aberta “maximizada”, pouco regrada e com desfechos piores.1
As cirurgias iniciadas por acesso minimamente invasivo e convertidas para acesso aberto devido a alguma limitação intra-operatória não podem ser consideradas simplesmente como mais uma cirurgia por via aberta, contaminando as estatísticas deste grupo (“crossover”), uma vez que, se realizadas desde o início através do acesso aberto, os transoperatórios e, consequentemente, os pós-operatórios poderiam ser diferentes, além do fato de não ter sido factível realizá-las através do acesso minimamente invasivo.2,3
Portanto, a seleção para as cirurgias minimamente invasivas é, geralmente, composta de casos de complexidade mais limitada, mesmo quando dentro de um mesmo estágio oncológico.2,4,5,6,7
Pacientes menos complexos ou em estágio mais precoce ou com menor comorbidade, a maioria dos submetidos a acesso minimamente invasivo, tendem a ter desfechos melhores, ao contrário dos mais complexos e complicados, os quais são comuns nos grupos dos submetidos a acessos abertos.2,4,6,9
Em algumas situações de dissecções oncológicas por acessos minimamente invasivos, a falta do tato pode provocar dissecção ou ressecção aquém ou, até mesmo, além do necessário (carcinomatose peritoneal, retroperitônio, endometriose pélvica avançada, aderências multiviscerais e/ou junto a estruturas nobres, etc). Apenas por que a cirurgia minimamente invasiva é possível de ser realizada não significa que deveria.10
Na cirurgia do câncer de colo uterino tratado por cirurgia minimamente invasiva, por exemplo, as pacientes podem ter desfechos oncológicos piores em comparação com aquelas operadas por via aberta convencional5, possivelmente devido à maior manipulação tumoral e/ou por diferença no padrão de dissecção, ressecção ou de higiene oncológica operatória sobre uma doença onde o tratamento cirúrgico locorregional é fundamental para o desfecho final.
Quando em mãos habilitadas, especialmente em cirurgias pélvicas com incisões limitadas à região infraumbilical ou suprapúbica e em operações para sondagem alimentadora gastrintestinal por minilaparotomia,11 ainda mais quando se respeita o acesso através da Linha Alba e limita-se os vieses expostos, as recuperações pós-operatórias em ambos os grupos podem ser semelhantes.5
Conflitos de interesse podem ocorrer, ocultamente,12 onde existe mais oferta de tecnologias, marketing, comércio, cosmética, glamour, exibicionismo e fama.
Cirurgias de complexidade menor também podem ser realizadas através de acessos abertos parcimoniosos, moderadamente invasivos, através de incisões e manipulações menores ou mais adequadas, pouco traumáticas, com profícua assistência pós-operatória clínica, analgésica, anti-inflamatória/antioxidante, nutricional e fisioterápica, aproximando-se dos resultados dos acessos minimamente invasivos. É o que percebemos em nossa prática.
Estudos comparativos bem conduzidos de não inferioridade ou de algumas reconhecidas e limitadas vantagens do acesso minimamente invasivo para ressecções oncológicas abdominais, em situações selecionadas, comprovam mais uma apropriada opção, mas não devem, tendenciosamente, induzir ao descrédito de acessos abertos na extensão adequada, econômicos e bastante seguros em mãos e mentes habilitadas na cirurgia de alta complexidade contra o câncer,13 inseparáveis do amplo peri-operatório clínico. A escolha pelo cirurgião (e equipe) deve prevalecer à escolha pelo método de acesso cirúrgico.14
“Só porque algo é novo (ou mais tecnológico e gourmet – adendo nosso), não significa que, necessariamente, seja melhor (ou que substitua o tradicional – adendo nosso). Precisamos tomar decisões baseadas em evidências em vez de decisões baseadas em marketing (ou paixões – adendo nosso). Os resultados mostram que a cirurgia aberta continua a ser uma boa opção, e que a experiência do cirurgião é o que importa” (Dipen Parekh – diretor de cirurgia robótica da Universidade de Miami Miller School of 6 Medicine apud AZMAN, 2018).13 “Neste nosso momento, o melhor custo-benefício é uma cirurgia convencional com uma equipe multidisciplinar experiente” (Marcus Sadi – coordenador da área de uro-oncologia da Escola Paulista de Medicina – UNIFESP – apud AZMAN, 2018).13
Talvez, o cerne da questão possa ser o da escolha de um método mais caro e eletivo em desvantagem do investimento no acesso às profícuas assistências e prevenções oncológicas pela maioria da nossa pobre população. Assim, “verdades” como incisões pequenas através de acessos tecnológicos, com menores morbidades e altas precoces, possam ser secundárias ou mais limitadas.
Salientamos a mensagem que almejamos transmitir: não se trata de desmerecer as tecnologias minimamente invasivas, mas de reconhecer e respeitar o método aberto bem procedido, o qual tem sido, injustamente, criticado ou inferiorizado em nosso meio científico e social, sobretudo fora de centros de referência e na prática clínica da cirurgia oncológica geral em hospitais que lidam e precisam continuar resgatando os pacientes oncológicos.
Em conclusão, não há demérito algum nos que permanecem realizando cirurgias oncológicas de alta complexidade através de acessos abertos adequados.
Referências:
1- BASTAWROUS, AL et al – Incidence, associated risk factors, and impact of conversion to laparotomy in elective minimally invasive sigmoidectomy for diverticular disease. Surg Endo 2019, 1-12 - doi.org/10.1007/s00464-019-06804-z
2- DENBO, JW et al – Minimally invasive lymphadenectomy for biliary tumors: stepwise progress. Ann Surg Oncol 2019, 26.6:1592-93 - doi.org/10.1245/s1043
3- GARAS, et al – Induced bias due to crossover within randomised controlled trials in surgical oncology: a meta-regression analysis of minimally invasive versus open surgery for the treatment of gastrointestinal cancer. Ann Surg Oncol 2018, 25:221-30 - doi:10.1245/s10434-017-6210-y
4- BARD, I et al – Minimally invasive distal pancreatectomy – on behalf of the Organizing Committee for the State of the Art Conference on Minimally Invasive Pancreas Resection. HPB 2017, 19:205-14 - dx.doi.org/10.1016/j.hpb.2017.01.009
5- RAMIREZ, PT et al – Minimally invasive versus abdominal radical hysterectomy for cervical cancer. N Engl J Med 2018, 379:1895-1904 - doi:10.1056/NEJMMoa1806395
6- NEWMAN, CM et al – The majority of colorectal resections require an open approach, even in units with a special interest in laparoscopy surgery. Colorectal Disease 2010, 14.1:29-34 - doi/10.1111/j.1463-1318.2010.02504.x
7- HILST, JV et al - Oncologic outcomes of minimally invasive versus open distal pancreatectomy for pancreatic ductal adenocarcinoma: a systematic review and meta-analysis. Eur J Surg Oncol 2019, 5.45:719-27. - doi.org/10.1016/j.ejso.2018.12.003
8- GANI, F et al – Minimally invasive versus open primary resection for retroperitoneal soft tissue sarcoma: a propensity-matched study from the National Cancer Database. Ann Surg Oncol 2018, 25.8:2209-17 - link.springer.com/article/10.1245/s10434-018-6538-y
9- TAYLOR, EF et al – Population based study of laparoscopic colorectal cancer surgery 2006-2008. Br J Surg 2013, 100:553-60 - doi/10.1002/bjs.9023
10- GRONCHI, A et al – Minimally invasive surgery for retroperitoneal sarcoma: just because we can does not mean we should. Ann Surg Oncol 2018, 25:2129-31 - link.springer.com/article/10.1245/s10434-018-6572-9
11- PETROIANU, A – Gastrostomia e jejunostomia por microincisão. Rev Bras Cir 1986, 86.4:161-3
12- WAYANT, C et al – Financial conflicts of interest among oncologista authors of reports of clinical drug trials. JAMA Oncol 2018, 4.10:1426-28 - doi:10.1001/jamaoncol.2018.3738
13- AZMAN, S – RAZOR: cistectomia radical robótica X aberta. Onconews, jun, 2018 - https://tinyurl.com/wvp4vor
14- YAXLEY, JW et al - Robot-assisted laparoscopic prostatectomy versus open radical retropubic prostatectomy: early outcomes from a randomised controlled phase 3 study. Lancet 2016, 10049.388: 1057-66. - doi.org/10.1016/s0140-6736(16)30592-X
Autores:
Pedro Ricardo de Oliveira Fernandes – Membro Titular das Sociedades Brasileiras de Cirurgia Oncológica e de Cancerologia, e do Colégio Brasileiro de Cirurgiões; Titular do Departamento de Cirurgia Oncológica dos hospitais Samaritano de Campinas e Indaiatuba/SP.
Francisco Américo Fernandes Neto – Membro Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões; Diretor de Assistência e Ensino, e Coordenador do Serviço de Cirurgia Oncológica do Hospital Municipal Dr Mário Gatti de Campinas/SP.
Durval Renato Wohnrath – Titular do Departamento de Cirurgia Oncológica do Hospital de Amor de Barretos – Fundação PIO XII.
O trabalho foi revisado pelo cirurgião oncológico Vinícius de Lima Vazquez, titular do Departamento de Cirurgia Oncológica do Hospital de Amor de Barretos – Fundação PIO XII.