Nunca se falou tanto em burnout na Oncologia – mas ainda é pouco. Oncologistas do mundo inteiro tipificam uma das populações mais afetadas pela chamada síndrome da exaustão profissional, descrita por Freudenberger em 1974, e que hoje parece ter impacto ainda maior na prática médica. Onconews conversou com os principais centros de câncer, públicos e privados, e parece que estamos longe de reconhecer a real dimensão do problema.
Estudo brasileiro1 com médicos de 11 residências em oncologia clínica mostrou que a maior parte cumpriu os critérios de burnout severo após a admissão nos programas (exaustão emocional em 49,0% e despersonalização em 64,7%). Ao final do primeiro ano, a prevalência de burnout saltou para 88% (p <0,01).
Não chega a surpreender. “A síndrome do esgotamento profissional é muito comum no meio médico, principalmente naqueles profissionais com até 15 anos de formação”, diz a psiquiatra Maria Cristina Stefano. “É um esgotamento físico e psíquico, mas os colegas não têm a percepção do problema, demoram a pedir ajuda e muitas vezes nem conseguem admitir que estão doentes”, explica a especialista, que em março deste ano discorreu sobre suicídio médico, em encontro realizado em São Paulo pela Sociedade Brasileira de Medicina Psicossomática.
Em janeiro, artigo publicado no Journal of Oncology Practice2 também ajudou a compreender a extensão do problema, agora entre médicos norte-americanos que atuam como assistentes do departamento de oncologia, predominantemente oncologistas clínicos (75,2%), com idade média de 41,8 anos e cerca de 9,6 anos de prática médica.
Os resultados mostram que a síndrome de burnout foi relatada por 34,8% dos médicos avaliados: 30,4% com alta exaustão emocional, 17,6% com despersonalização elevada e 19,6% apontaram baixa sensação de realização pessoal. Paradoxalmente, a satisfação com a carreira e com a especialidade foi alta (86,4% e 88,8%, respectivamente), revelando que nos próximos 2 anos, apenas 3,6% dos médicos norte-americanos ouvidos no estudo planejam mudar de carreira ou de especialidade e apenas 2% têm planos de se aposentar.
Na Europa, estudo de Banerjee et al3 acendeu um polêmico debate nas páginas do Annals of Oncology em 2017. Os pesquisadores identificaram que a prevalência geral de burnout entre os oncologistas europeus chegava a 71%, com taxas variando de 52% no norte da Europa a 84% na Europa Central. Artigo de Bianchi e colegas colocou em xeque o método empregado (Can we trust burnout research?).
“A heterogeneidade reflete diferenças metodológicas, diferenças entre as amostras avaliadas e até mesmo entre o perfil dos serviços”, explica o oncologista Auro del Giglio, um dos autores do primeiro estudo a enfocar o problema na realidade do oncologista brasileiro. Quase 30% dos especialistas ouvidos apresentaram alterações graves em uma das três dimensões avaliadas - exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal. “A limitação foi a pequena margem de respondentes”, explica ele, também co-autor de estudo de meta-análise publicado em 2008, que demonstrou globalmente elevada prevalência de burnout entre médicos e demais profissionais da saúde envolvidos nos cuidados em câncer.
Del Giglio lembra que a explicação é sempre multifatorial. “O médico lida com problemas, com pacientes descontentes, plantões, tem que dar conta da burocracia, tem a pressão do tempo. Tudo isso é inerente à atividade médica e o burnout é também produto de tudo isso, mas nem sempre é percebido pelo profissional”, diz.
A verdade é que o cenário preocupa e sugere que ainda há muito a ser desvelado. Sabemos pouco sobre as consequências do burnout, menos ainda sobre sua relação com pior desempenho assistencial. É o que basta para reforçar a importância de uma vigilância mais ativa, que passa por reconhecer o cenário atual. As instituições de assistência estão preparadas? Onconews perguntou aos principais centros de câncer, públicos e privados, e parece que estamos longe de reconhecer a real dimensão do burnout.
“As instituições não querem se expor, muitas vezes nem respondem, porque é muito complexo revelar que até hoje não existe nenhum tipo de mecanismo de proteção à saúde do médico. Por outro lado, é também um problema encoberto pelas relações de trabalho”, analisa Maria Cristina.
Cuidado ao cuidador
Mas há caminhos inspiradores. Em meio ao aparente vazio de iniciativas institucionais, o Instituto Nacional de Câncer, o INCA, mantém um programa dedicado à prática de mindfulness para todo o corpo clínico e demais profissionais de saúde da instituição, em quatro unidades (HC1, HC2, HC4 e na pediatria). “É um programa que nasceu de um olhar integral sobre o indivíduo, em seus aspectos físicos, mentais, emocionais, espirituais e sociais”, explica o médico Carlos José Coelho de Andrade, oncologista responsável pelo Núcleo de Cuidados Integrais do INCA. “O estresse relacionado ao trabalho chegou a uma escala sem precedentes, diz Andrade. “A dimensão do autocuidado tem que ser olhada como um aspecto do profissionalismo. Queremos que com esse cuidado, todos possam cuidar melhor do outro”, resume.
Os resultados começam a aparecer. Instituída em julho de 2017 como a primeira atividade do recém-criado Núcleo de Cuidados Integrais, a prática de mindfulness no INCA é lembrada em relatos individuais, indicando que a pressão diminuiu e ficou mais fácil gerenciar o estresse. Os encontros são semanais, em programas que começam com a discussão de evidências. “Quando você apresenta um dado científico e mostra que aquilo tem repercussão em um desfecho relevante, fica mais fácil conquistar a confiança do corpo clínico”, ensina Andrade. Hoje, ele se diz convencido de que oferecer ferramentas para o controle e gestão do estresse desde o início da atividade médica, quem sabe ainda na graduação, é o caminho para dotar o profissional de um recurso indispensável para a vida profissional.” É tão importante como saber dar notícia difícil”, compara.
Na literatura, evidências mostram os benefícios do mindfulness: redução dos sintomas de estresse, ansiedade e depressão, além de ganhos associados à capacidade de responder às situações difíceis da prática médica e até na comunicação e no relacionamento médico-paciente. “Preservar a força de trabalho e a qualidade dos profissionais é algo que deve despertar o interesse de toda instituição, porque o adoecimento da equipe repercute diretamente na qualidade do cuidado”, prossegue o especialista do INCA. “Precisamos perceber a importância de medidas que possam mitigar isso. As pessoas estão no limite”, conclui.
Dados já reportados corroboram a alta carga de trabalho, baixo senso de controle e autonomia, desequilíbrio trabalho-vida e a sensação de atividade aparentemente sem sentido como traços marcantes do burnout, “todos comuns no treinamento e na prática da medicina, que podem levar à angústia crônica e a sérios encargos psicológicos, interpessoais e pessoais”, descreve estudo de revisão sistemática publicado em fevereiro de 2018. No entanto, ainda é preciso romper o silêncio. O estudo mostra que embora a literatura reporte um desgaste psicológico mais elevado em profissionais de saúde, com taxas de suicídio superiores à média da população, apenas uma minoria recebe tratamento. Preocupações como confidencialidade, estigma, possíveis implicações na carreira e restrições de custo e tempo são citadas como barreiras principais (Acad Psychiatry. 2018 Feb;42(1):109-120).
No mesmo estudo de revisão sistemática, os autores reportam que de 300 a 400 médicos morrem por suicídio a cada ano, somente nos Estados Unidos, e nada indica que as taxas estejam diminuindo.
Barreiras e caminhos
Muitas vezes encoberto pelas relações de trabalho, o burnout é uma preocupação entre estudantes da graduação médica e começa a entrar na agenda de residências em oncologia, a exemplo da iniciativa recém implantada no A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo. Mas seu reconhecimento entre os profissionais ainda enfrenta entraves importantes. “Nas faculdades de medicina existem os ambulatórios de atenção ao estudante, ou centros de atenção, sendo o mais antigo o da USP, do Professor Milan. E para o profissional?”, questiona a psiquiatra Maria Cristina Stefano. “Um seguro-saúde não pode nem ser acionado por um médico em depressão, porque até hoje isso não é previsto, tem que ser uma doença física. São situações que não permitem que o médico se afaste por uma questão de saúde mental. Imagine isso associado ao preconceito e à discriminação. Se o médico assume o problema e se licencia, isso pode custar o emprego”, diz.
Uma das instituições de assistência oncológica mais antigas do país, o A.C.Camargo Cancer Center começa a dar os primeiros passos na gestão do estresse com um conjunto de ações entre os médicos residentes, mas ainda engatinha em busca de um olhar ampliado para todo o corpo clínico. “Se ele aprender desde cedo os caminhos para dissipar esse sofrimento e maneiras de enfrentar as situações do dia a dia, a gente consegue prolongar a qualidade desse médico e a atuação dele”, explica o patologista Victor Piana de Andrade, diretor médico do hospital. ”É uma solução complexa, que leva tempo para ser implementada, e decidimos começar pelo ponto mais frágil”, justifica.
Entre as iniciativas está a parceria externa com a Sociedade Junguiana, “para que voluntariamente e anonimamente eles possam procurar apoio psicológico fora da instituição”, explica.
Outra proposta para a gestão do estresse e a prevenção da síndrome de esgotamento profissional é promover um novo olhar sobre a morte. Diferentes estudos mostram que altos escores de burnout estão associados a atitudes negativas em relação à expressão de emoções diante da morte do paciente. Dados da literatura mostram que não é incomum que o médico seja acometido de um sentimento de fracasso e julgue sua própria competência e profissionalismo. Assim, oferecer oportunidades para expressar a emoção, através de intervenções individuais ou em grupo, é um caminho já adotado globalmente por diferentes centros de câncer.
"Poucos médicos lidam com a morte e sofrem tanto quanto os oncologistas", analisou Laurie Lyckholm, então professora da Escola de Medicina da Virginia Commonwealth University, que escreveu o capítulo sobre estresse, burnout e luto para o currículo da ASCO. “A frustração com o sucesso limitado do tratamento e a exposição contínua a doenças fatais tornam os oncologistas particularmente vulneráveis ao estresse e ao esgotamento”, registrou.
No A.C.Camargo, a lição veio de dentro, inspirada pelo atendimento pediátrico, onde todos os óbitos são discutidos pelos profissionais que participaram dos cuidados. “Aquele é o momento de todo mundo externar que sentimento ficou daquilo. Muitas vezes o cuidado é prolongado, assim como o convívio com a família, e pode ser grande causador de estresse”, prossegue Victor, que agora decidiu levar o exemplo para a unidade de cuidados com o paciente adulto. “Se não cuidarmos desde cedo de questões como essas, perdemos médicos brilhantes por conta de sofrimento. Quando chegam aos 50 anos querem abandonar a oncologia e fazer outra coisa da vida, porque o estresse se acumulou. Então, você tem que treinar, primeiro para que esse profissional nunca viva a chamada fadiga da compaixão e, certamente, para prevenir e evitar o burnout. Quem cuida do outro precisa cuidar de si mesmo”, conclui.
Referências:
1 - J Cancer Educ. 2016 Sep;31(3):582-7. doi: 10.1007/s13187-015-0850-z.
2 - J Oncol Pract. 2018 Jan;14(1):e11-e22. doi: 10.1200/JOP.2017.025544. Epub 2017 Nov 30.
3 - Ann Oncol. 2017 Jul 1;28(7):1590-1596. doi: 10.1093/annonc/mdx196.
4 - Ann Oncol. 2017 Sep 1;28(9):2320-2321. doi: 10.1093/annonc/mdx267
Reconhecendo sinais e sintomas
Alguns sinais servem de alerta e pouco a pouco configuram a síndrome da exaustão profissional. “O indivíduo começa a apresentar uma apatia extrema e até uma indiferença em relação ao sofrimento alheio, na contramão da empatia, além de um sofrimento psíquico que se assemelha muito a uma depressão e se instala como resposta a um estado de profunda anedomia”, diz a psiquiatra Maria Cristina Stefano.
Colocar em xeque o valor da própria atividade profissional é outro componente do burnout. “O médico tem a sensação de ‘enxugar gelo’ e passa a questionar se realmente sua intervenção tem alguma repercussão válida. Com o agravamento e o tempo de permanência nesse estado emocional, ele passa a desenvolver um quadro somático e pode apresentar alterações na pressão arterial, arritmia cardíaca, dor difusa, insônia – frequente entre colegas que cumprem plantões – além de desvios de comportamento, como o abuso de álcool e drogas ilícitas, especialmente opioides e anestésicos cirúrgicos”, diz a especialista. “O maior número de suicídios acontece justamente entre os médicos que têm acesso a essa classe de medicamentos”, explica.
O processo é muitas vezes inconsciente e cercado de negação. “Nós médicos temos muito presente a questão da onipotência. Por isso, reconhecer a impotência é tão difícil. Procurar ajuda é admitir o estado de doença”, analisa.
Como promover o bem-estar
Para ajudar a evitar prejuízos à saúde pessoal e profissional, os oncologistas e suas equipes devem prestar atenção aos sinais e sintomas do estresse e seguir algumas dicas práticas para promover o bem-estar emocional.
Morte e luto são reconhecidamente estressores importantes, mas o tempo disponível para a vida pessoal também conta pontos importantes na gestão do estresse. Ferramentas de gerenciamento de tempo e técnicas organizacionais podem ajudar a aliviar a pressão diária e figuram em diferentes recomendações.
Outra dica de especialistas é saber delegar, lembrando que outros profissionais também estão implicados na linha de cuidados com o paciente.
A oncologista Laurie Lyckholm, apontada como uma das grandes autoridades mundiais no assunto, defende a remoção do lixo de papeis que se empilham na rotina médica, lembrando que “um ambiente limpo e claro reduz o estresse por si só. Se você gastar apenas 10 minutos por dia para eliminar parte de uma de suas pilhas de papéis, após cerca de 2 a 3 semanas, você não terá mais pilhas”, recomenda. Para o especialista, a chave do equilíbrio está no planejamento. “Planeje seus dias e arrume tempo para relacionamentos, exercícios, sono, descanso e risos", propõe.
Felicidade como vantagem competitiva
Na Cúpula Mundial realizada em Dubai no início de 2017, um painel discutiu como promover políticas públicas capazes de valorizar a felicidade no ambiente de trabalho. Se praticamente todos os países têm uma agência para regular a segurança física, com regras que contemplam desde instalações físicas, até o uso correto de equipamentos de segurança, por que não mobilizar esforços semelhantes para a segurança emocional no local de trabalho?
A reflexão é um convite às nações e instituições, públicas e privadas, para que ao lado de critérios clássicos, como indicadores de crescimento econômico ou nível de emprego, também a felicidade seja incorporada como objetivo estratégico e indicador de bem-estar.
Nos países escandinavos isso já começa a acontecer e entre as recomendações estão, por exemplo, o controle da quantidade de trabalho e pressão do tempo, além de questões ligadas à intimidação ou estresse constante no ambiente profissional. Enquanto o americano médio trabalha 1.790 horas por ano, na Dinamarca a média é de 1.450 horas/ano.