A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) negou o registro do Herzuma®, produto biossimilar da terapia anti-HER2 trastuzumabe, fabricado pela sul-coreana CellTrion. A decisão foi publicada no Diário Oficial de 17 de março (DOU nº 54) e segundo a Anvisa tem caráter administrativo, já que a asiática teria descumprido o prazo de entrega de documentos. Seja como for, o episódio escreve mais um capítulo na história dos biossimilares e mostra uma realidade que já começa a impactar a oncologia brasileira. Afinal, estamos preparados?
Valéria Hartt e Sergio Azman
Em 2015, a decisão do FDA de aprovar o filgrastim da Sandoz no mercado norte-americano para todas as cinco indicações do medicamento original (Neupogen®) foi apontada como um marco histórico para os biossimilares. Eles já são uma realidade também por aqui desde a chegada das interleucinas, interferonas e outros biofármacos da velha geração, e em 2015 deram um passo importante com o registro do infliximabe da Celltrion, o primeiro anticorpo monoclonal (mAb) biossimilar aprovado no Brasil. Agora, o país também aguarda os primeiros mAbs em versão biossimilar, ainda em meio a muito debate e grandes expectativas.
Em um caminho sem volta, os biossimilares vêm com a proposta de fomentar a competição com as big pharma e prometem oferecer não apenas eficácia e segurança, mas garantir uma redução nos custos, ampliando o acesso ao tratamento oncológico.
Os anticorpos monoclonais rituximabe (Rituxan® ou Mabthera®), bevacizumabe (Avastin®), trastuzumabe (Herceptin®) e cetuximabe (Erbitux®), listados entre os “top 10” mais usados na oncologia, são alguns dos que chegam em breve em versões biossimilares para o tratamento de diferentes tipos de câncer.
“Os biossimilares vieram para ficar e não há nenhum motivo para ser diferente. É assim no mundo inteiro”, diz o reumatologista Valderílio Feijó Azevedo, professor da Universidade Federal do Paraná, uma das grandes autoridades no assunto. “É um processo complexo, mas companhias que já produzem inovação estão preparadas para produzir cópias dessas moléculas, com características físico-químicas e biológicas muito parecidas, dentro de uma variação de biossimilaridade que vai ser avaliada por agências reguladoras e fontes pagadoras”, esclarece.
A Europa foi pioneira na aprovação de drogas biossimilares, impulsionada pelo ciclo natural da inovação. Hoje, com o fim das patentes dos primeiros biológicos, todas as cinco regiões do planeta percorrem o caminho, ainda que por rotas diferentes. E no Brasil, estamos preparados para a chegada dos biossimilares de segunda geração?
CONTROVÉRSIAS
“Ainda não alcançamos 100%, mas temos nos preparado muito”, avalia Azevedo. “Hoje, você vai a um congresso e todo mundo já ouviu falar, o que sem dúvida é um avanço”, diz. O especialista admite que tanta novidade ainda traz um ambiente de incertezas para prescritores e pacientes, assim como desafia a emergente indústria nacional de biotecnologia, autoridades reguladoras e fontes pagadoras. A experiência global certamente somou pontos e ajudou a aplacar o temor dos primeiros tempos.
“Dos anticorpos monoclonais, até agora não entrou nenhuma molécula que não seja biossimilar de verdade. Todas aquelas conjecturas iniciais, quase como um programa de educação continuada de terror contra os biossimilares em defesa da proteção de mercado, nada disso se confirmou”, diz.
Mas a polêmica continua e a regulação está entre os temas centrais. Afinal, é a política regulatória que vai definir questões-chave, que vão da nomenclatura para identificar os biossimilares e permitir sua rastreabilidade, até definições sobre estudos comparativos. Outro desafio é a intercambialidade, que continua a provocar debates acalorados.
A Anvisa tem avançado, mas carrega a crítica de ter extrapolado indicações terapêuticas ao registrar o primeiro anticorpo monoclonal biossimilar, o infliximab, da Celltrion (Remsima®), que tem como produto de referência o Remicade®, da Janssen. Significa que o medicamento foi aprovado em cenários que não foram avaliados nos estudos apresentados.
“No caso de um anti-TNF, a extrapolação de indicações em doenças que têm fisiopatogenia muito parecidas não é um problema, tanto que o Remsima® foi aceito na Europa e em muitos outros países, com poucas limitações, como aconteceu no Canadá”, explica Azevedo. “Foi um lobby da indústria que começou com a doença de Crohn, mas que não colou na Europa”, afirma.
Para Ricardo Garcia, diretor do Centro Latino-Americano de Pesquisa em Biológicos (CLAPBio), a conduta adotada na Europa e no Brasil é temerosa e, no caso brasileiro, contraria a própria regulamentação. “A nossa legislação diz uma coisa e na prática aconteceu outra. Segundo a RDC 55 de 2010, para aprovar um medicamento com extrapolação ele precisa comprovar dados com a população alvo mais sensível para aquela indicação, tanto do ponto de vista de eficácia, quanto de reação imunológica. E isso não foi feito”, afirma. “Se a empresa quer que seu medicamento seja aprovado para outras indicações, ela deve fazer estudos específicos, porque os pacientes são diferentes, reagem de forma diferente. Não dá simplesmente para extrapolar sem fazer estudos de imunogenicidade. Essa é uma grande discussão que temos hoje com a Anvisa”, diz Garcia.
A crítica da CLAPBio é de que apesar de estudos realizados apenas para artrite reumatoide, além de um pequeno ensaio de farmacodinâmica e farmacocinética para coliangite esclerosante, o medicamento obteve registro no Brasil para o tratamento de artrite reumatoide, espondilite anquilosante, psoríase, artrite psoriásica, doença de Crohn em adultos, doença de Crohn pediátrica, doença de Crohn fistulizante, colite e retocolite ulcerativa.
A Anvisa rebate. “A empresa apresentou todos os estudos que demonstraram que o mecanismo de ação e os receptores envolvidos nas diferentes indicações terapêuticas eram os mesmos”, explica a gerente de produtos biológicos, Daniela Marreco Cerqueira. “O perfil de segurança e imunogenicidade do infliximabe estava bem demonstrado e bem robusto, e a empresa ainda apresentou vários estudos adicionais realizados in vitro para demonstrar o mecanismo de ação do produto nas diferentes indicações terapêuticas. Assim, a Anvisa também aprovou a extrapolação das indicações, como fizeram outras autoridades do mundo, com exceção do Canadá”, afirma.
GESTÃO DE RISCO
Lobbies e interesses comerciais à parte, a verdade é que os biossimilares inspiram mesmo atenção redobrada. Imagine o mesmo anti-TNF, um inibidor de fator de necrose tumoral-alfa, aprovado também para o tratamento da artrite reumatoide. “Comparado ao metotrexato, existe o risco aumentado de infecções oportunistas, com atenção especial à tuberculose e herpes zoster. Além das infecções, há também descrições de malignidades na bula, como é o caso dos linfomas”, explica Adalton Guimarães Ribeiro, Diretor Técnico de Farmacovigilância do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde de São Paulo. “O médico precisa ter todas essas informações de segurança antes de prescrever. Muitas reações adversas são descritas em bula e o profissional terá que decidir se o dano é gerenciável ou se há necessidade da troca da terapia, também especificado na bula”, alerta Ribeiro. A recomendação tem toda razão de ser no contexto da oncologia e das terapias personalizadas, onde drogas-alvo são selecionadas por genótipos específicos.
Fica evidente que o controle regulatório vai continuar sob os holofotes. E não é exagero. Nos biossimilares, até mesmo variações sutis no processo de produção podem afetar as propriedades biológicas e clínicas, resultando em diferenças importantes nos perfis de eficácia e segurança.
“Foram verificadas diferenças nas taxas de fucosilação entre o infliximabe biossimilar e o produto de referência”, explica o direto da CVS. A fucosilação é uma etapa da glicosilação da proteína que influencia aspectos como meia vida, imunogenicidade e interfere até mesmo na atividade biológica. “Diante dessas diferenças, há críticas de que o produto biossimilar não trata a doença de Crohn, por exemplo. Como os dados não foram apresentados, o produto simplesmente foi vetado no Canadá para essa e outras indicações”, ilustrou Ribeiro. De novo, o assunto divide opiniões e desperta controvérsias. “São apenas inferências, nada ficou demonstrado até agora e a experiência europeia prova que o produto tem eficácia”, diz Valderílio Azevedo. “Até o Canadá já está revendo posição”, avisa.
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