Publicados no Annals of Surgery, os resultados do seguimento de 5 anos do estudo RAPIDO mostraram que pacientes com câncer de reto localizado submetidos ao tratamento com terapia neoadjuvante total (TNT) com radioterapia de curso curto e quimioterapia de consolidação apresentaram benefício de redução de metástases à distância. No entanto, esta forma de TNT foi associada a um maior risco de recidiva locorregional da doença. Estes achados comprometem o uso desta estratégia de TNT nessa população de pacientes? Os médicos Bruna Vailati, Rodrigo Perez (na foto, à direita) e Robson Ferrigno comentam os resultados, que ainda estão longe de representar um consenso.
No estudo, 920 pacientes foram randomizados entre o braço experimental (EXP - radioterapia de curso curto, quimioterapia e cirurgia) e o braço de tratamento convencional (STD - quimiorradioterapia, cirurgia e quimioterapia pós-operatória opcional). Foram analisadas a falha locorregional (LRF), incluindo LRF precoce (eLRF - sem ressecção, exceto para preservação do órgão/ressecção R2) e recorrência locorregional (LRR) após uma ressecção R0/R1.
Resultados
No total, foram elegíveis 460 pacientes para o braço experimental e 446 pacientes para o tratamento convencional. Aos 5,6 anos (mediana de acompanhamento), a falha locorregional (recorrência ou persistência da doença) foi observada em 54 de 460 (12%) e 36 de 446 (8%) pacientes nos braços experimental e de tratamento convencional, respectivamente (p = 0,07). Nos pacientes do braço experimental a recorrência locorregional foi observada com mais frequência (44/431 (10%) versus 26/428 (6%); p=0,027) e o número de paciente com a integridade do mesorreto comprometida no procedimento cirúrgico também foi maior nesse grupo (42/378 (11%) vs. 25/389 (6%); p=0,022). Mesmo nos pacientes submeticos a ressecção cirúrgica R0, a taxa de recorrência locorregional foi maior no grupo EXP (7,2% vs 3,9%; p=0,049).
O tratamento experimental, linfonodos laterais aumentados, margem de ressecção circunferencial comprometida, depósitos tumorais e comprometimento linfonodal na patologia foram preditores significativos para o desenvolvimento de recorrência locorregional. A localização das recorrências locais foi semelhante entre os grupos. A sobrevida global após a falha locorregional foi comparável entre os grupos (HR 0,76 (95% CI 0,46-1,26); p=0,29).
“O tratamento experimental foi associado a um risco aumentado de recorrência locorregional, enquanto a redução na falha do tratamento relacionada à doença e metástases à distância permaneceu após 5 anos. O refinamento adicional do TNT no câncer retal é mandatório”, concluíram os autores.
Resultados NÃO apoiam a indicação do tratamento
Por Bruna Vailati e Rodrigo Perez, coloproctologistas
Desde sua publicação, o estudo RAPIDO ganhou bastante destaque e tornou-se amplamente popular e atraente por vários motivos: (1) apesar de não apresentar melhora na sobrevida global, os pacientes do grupo experimental apresentaram taxa de recorrência da doença menor no seguimento de 3 anos, diferença causada principalmente pela menor taxa de doença metastática; (2) taxas maiores de resposta patológica completa (28% x 14%, p<0.0001), sugerindo que o tratamento experimental teria potencial de gerar maior downstaging que regimes anteriores; (3) no contexto da pandemia de COVID-19, onde diversas iniciativas para reduzir o número de visitas do paciente a unidades médico-hospitalares foram instituídas, o curso curto reduziria a exposição dos pacientes e facilitaria medidas de distanciamento social.
Independentemente das potenciais falhas do estudo, os resultados dessa estratégia, inicialmente promissores, foram seguidos por uma aceitação generalizada quase imediata desse regime como a estratégia de tratamento inicial preferida para pacientes com câncer de reto localmente avançado.
No entanto, os resultados do estudo recentemente publicado, relacionados ao controle local da doença, podem (e devem!) mudar esse cenário. Os pacientes incluídos no braço experimental tiveram taxas significativamente mais altas de recorrências locais, mesmo após a ressecção R0 do tumor primário. Curiosamente, esses pacientes tiveram tumores significativamente mais responsivos à quimiorradiação com quase o dobro da resposta patológica completa.
Embora as causas exatas para a maior taxa de recidiva local ainda não sejam totalmente compreendidas, algumas questões devem ser consideradas. O estudo tinha como desfecho primário a sobrevida livre de doença e efetivamente apresentou um benefício de 7% nesse aspecto. Esse ganho faz com que o estudo seja considerado por muitos como “bem-sucedido”. No entanto, a observação do pior controle local da doença pode ter sido o golpe fatal na ampla implementação dessa estratégia de tratamento na prática clínica. Outros regimes de TNT com curso longo de RT (particularmente com quimioterapia de consolidação) resultaram em benefícios semelhantes (sempre modestos de aproximadamente 7%) na sobrevida livre de doença metastática (novamente sem benefício na sobrevida global). No entanto NENHUM outro esquema (pelo menos até agora) sugeriu qualquer aumento nas taxas de recorrência local. Além disso, TNT usando regimes de RT de curso longo também foram associados a taxas mais altas de resposta clinica completa e preservação de órgão. A verdade é que a experiência com preservação de órgãos e RT de curso curto ainda é muito inicial, pois pouco se sabe sobre os denominadores das séries publicadas até agora.
Nesse contexto, torna-se difícil entender qual seria o cenário ideal para tal estratégia de tratamento além da conveniência do paciente relacionado com a duração global do tratamento. Até que dados novos e incrivelmente encorajadores estejam disponíveis para TNT com RT de curso curto, provavelmente devemos restringir ao máximo a indicação desse tratamento, pelo menos no cenário de âncer de reto localmente avançado (onde o risco de recidiva local é quase sempre uma preocupação) não-metastático.
Estratégia TNT do estudo RAPIDO pode SIM ser uma estratégia interessante
Por Robson Ferrigno, médico especialista em Radioterapia
A atualização do estudo RAPIDO com seguimento mediano de 5,6 anos mostrando maior taxa de recaída loco-regional no braço experimental que utilizou a estratégia de TNT com radioterapia de curso rápido deve ser analisada com cautela. Descrevo abaixo quatro pontos para serem considerados:
1 - A diferença na taxa de falha loco-regional entre as duas estratégias de tratamento foi de apenas 4% e valor de p não significativo (12% Vs 8%, p=0,07). Para os pacientes submetidos à ressecção R0 a diferença na taxa de recorrência loco-regional foi de apenas 3% e valor de p marginal (7% Vs 4%; p=0,044).
2 - O seguimento mediano de 5,6 anos ainda é curto e as diferenças no controle local publicadas no momento podem aumentar ou diminuir. Os próprios autores reconhecem na parte de discussão que as causas de maior recidiva local no braço experimental ainda são desconhecidas uma vez que os fatores de recaída local estão bem balanceados entre os dois braços, exceto maior violação do mesorreto nos pacientes tratados com TNT, que por sua vez aumenta as chances de recorrência loco-regional.
3 - Quando os pacientes são separados por técnica de radioterapia, não houve diferença nas taxas de recorrência local entre os dois braços quando os pacientes receberam a radioterapia com técnica IMRT (6,3% Vs 6,2%; p=0,96). A diferença ocorreu apenas em pacientes tratados com radioterapia conformada (11,6% Vs 6%; p=0,016). Isso gera a hipótese que regimes de radioterapia de curta duração devem ser realizados com técnica IMRT para assegurar a eficácia. E a proporção de pacientes tratados com técnica conformada foi maior nos pacientes do braço TNT (p=0,029).
4 - Os pacientes tratados com TNT tiveram maior taxa de resposta completa (93% Vs 87,3%, p=0,008) e menor taxa de metástase a distância em 5 anos (23% Vs 30,4%, p=0,011). A principal finalidade de utilizar uma quimioterapia mais eficaz antes da cirurgia foi exatamente para diminuir a falha a distância. Esse objetivo foi alcançado. Como a sobrevida global não foi diferente entre os dois braços, conclui-se que a maioria dos pacientes com recaída loco-regional puderam ser resgatados.
Portanto, em minha particular interpretação, ainda é cedo para condenarmos a estratégia de TNT utilizada no estudo RAPIDO. Maior seguimento clínico desses pacientes pode mudar a diferença de controle local entre os braços.
Além disso, a estratégia de TNT usada nesse estudo é muito interessante. Com apenas 5 dias úteis de radioterapia, o paciente é liberado para iniciar uma quimioterapia mais eficaz para efeito sistêmico. Num país como o Brasil, onde faltam aparelhos de radioterapia no âmbito do SUS e há enormes filas de espera mesmo em alguns serviços privados, a estratégia de radioterapia de curta duração se torna bastante conveniente e confortável para os pacientes.
Para pacientes com doença não tão avançadas localmente como os do estudo em questão (estádios cT4a/b cN2), a estratégia TNT com radioterapia de curta duração realizada com técnica IMRT ainda pode ser uma estratégia bastante interessante.
Referência: Dijkstra, Esmée A. MD; Nilsson, Per J. MD, PhD; Hospers, Geke A.P. MD, PhD; Bahadoer, Renu R. MD; Meershoek-Klein Kranenbarg, Elma MSc; Roodvoets, Annet G.H. MSc; Putter, Hein PhD; Berglund, Åke MD, PhD; Cervantes, Andrés MD, PhD; Crolla, Rogier M.P.H. MD; Hendriks, Mathijs P. MD; Capdevila, Jaume MD; Edhemovic, Ibrahim; Marijnen, Corrie A.M. MD, PhD; van de Velde, Cornelis J.H. MD, PhD; Glimelius, Bengt MD, PhD; van Etten, Boudewijn MD, PhD; and collaborative investigators. Locoregional Failure During and After Short-course Radiotherapy followed by Chemotherapy and Surgery Compared to Long-course Chemoradiotherapy and Surgery – A Five-year Follow-up of the RAPIDO Trial. Annals of Surgery ():10.1097/SLA.0000000000005799, January 20, 2023. | DOI: 10.1097/SLA.0000000000005799