Estudo que mapeou percepções sobre as barreiras ao rastreamento do câncer do colo do útero em sete países europeus identificou que a organização dos sistemas de saúde e a maturidade dos programas de rastreio diferem entre os países, enquanto as barreiras psicológicas das mulheres vulneráveis apresentam várias semelhanças, entre elas o medo, a vergonha e a falta de prioridades nos cuidados preventivos. O epidemiologista Arn Migowski (foto) analisa os resultados e as similaridades entre Europa e Brasil.
O estudo está inserido no projeto CBIG-SCREEN, financiado pela União Europeia, que visa combater a desigualdade no rastreamento do câncer do colo do útero para mulheres vulneráveis (www.cbig-screen.eu). Os dados foram coletados na Bulgária, Dinamarca, Estônia, França, Itália, Portugal e Romênia.
Foram considerados participantes em três níveis, abrangendo as mulheres vulneráveis que utilizam os programas de rastreamento (nível micro), profissionais de saúde e assistentes sociais (nível médio) e gestores/decisores de saúde envolvidos nos programas de triagem (nível macro).
Nos sete países, ocorreram 25 reuniões em Conselhos Colaborativos de Usuários com duração de 2 horas cada, no período entre outubro de 2021 e junho de 2022. As reuniões foram gravadas em vídeo ou áudio, transcritas e traduzidas para o inglês para uma análise qualitativa do quadro.
Os resultados revelam que 120 participantes foram consideradas nos Quadros Colaborativos de Usuários. As barreiras específicas foram relacionadas com diferentes sistemas de saúde e características das populações vulneráveis. Na Romênia e na Bulgária, a falta de um esforço contínuo de rastreio e a falta de estratégias para identificar as mulheres elegíveis foram apontadas como barreiras para todas as mulheres, em vez de serem específicas para mulheres em situações vulneráveis. Os participantes na Dinamarca, Estônia, França, Itália e Portugal identificaram como barreiras a falta de sensibilidade cultural e social dos prestadores em relação às mulheres vulneráveis. Em todos os países, o medo, a vergonha e a falta de prioridades nos cuidados de saúde preventivos das mulheres vulneráveis foram identificados como barreiras psicológicas.
O estudo fornece uma visão geral das barreiras percebidas para a participação de mulheres vulneráveis no rastreamento do câncer do colo do útero em sete países europeus. Os resultados mostram que a organização dos sistemas de saúde e a maturidade dos programas de rastreio diferem entre os países analisados, enquanto as barreiras psicológicas das mulheres vulneráveis apresentam várias semelhanças.
O câncer do colo do útero causa aproximadamente 300.000 mortes por ano em todo o mundo. Os autores destacam que em 2020 ocorreram 58.169 novos casos e 25.989 mortes causadas por câncer do colo do útero na Europa, o que evidencia a urgência em compreender as barreiras locais que impedem a adesão à prevenção por mulheres de grupos vulneráveis e desfavorecidos.
Barreiras para o rastreamento do câncer do colo do útero e a priorização de populações vulneráveis: similaridades entre Europa e Brasil
A eficiência e a efetividade do rastreamento do câncer do colo do útero, tanto no contexto do tradicional citopatológico do colo do útero, quanto no novo paradigma de rastreamento primário com testes moleculares, dependem em grande parte da organização de programas de rastreamento. O artigo de Bøje e colaboradores descreve a visão de diversos atores sobre barreiras de implementação desse rastreamento em sete países europeus, com especial foco em mulheres com maior vulnerabilidade. Praticamente todos esses países apresentam programas de rastreamento de base-populacional. Algumas das barreiras destacadas são características de problemas organizacionais, como falta de interoperabilidade entre sistemas de informação e dificuldade de acesso a um cadastro populacional, que são problemas que há anos temos buscado superar no Brasil, onde ainda predomina o rastreamento oportunístico. Nesse tipo de abordagem o rastreamento é oferecido às mulheres que frequentam os serviços de saúde por outros motivos, o que favorece o sobrerrastreamento desse grupo de mulheres enquanto mulheres mais vulneráveis tendem a permanecer desassistidas.
A decisão da Conitec, publicada no último dia 08 de março, de incorporar o rastreamento com testes moleculares por meio de um programa organizado pressupõe, por exemplo, convite ativo da população-alvo na idade e periodicidade recomendadas para o rastreamento. Nesse sentido é importante notar que stakeholders de países como Dinamarca e França destacaram dificuldades de entendimento dos convites ao rastreamento como barreiras importantes. Certamente o uso de linguagem acessível deve ser uma preocupação em nosso contexto e a mesma pode variar nas diversas regiões do Brasil.
Em todos os sete países europeus abordados, o medo e a vergonha das mulheres mais vulneráveis apareceram como importantes barreiras ao rastreamento. No Brasil, a edição mais recente da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), mostrou que entre as mulheres de 25 a 64 anos que relataram nunca ter feito rastreamento de câncer do colo do útero, os motivos mais frequentes foram “não achar necessário” (45,1%); “não ter sido orientada a fazer o exame” (14,8%) e “ter vergonha” (13,1%). Esse grupo de mulheres deve ser considerado como prioritário para busca ativa no advento do rastreamento organizado no país.
As diversas barreiras de acesso e a falta de busca ativa, de coordenação do processo e de organização da rede assistencial geram também muitas perdas de seguimento de mulheres com rastreamento alterado sem que as mesmas concluam a investigação diagnóstica e o tratamento, o que contribui para diminuir ainda mais a efetividade do rastreamento. Essas barreiras tendem a atingir de forma de desproporcional justamente as mulheres em situação de maior vulnerabilidade e que possuem maior risco de desenvolver câncer do colo do útero. Por isso é importante que sejam planejadas estratégias específicas para alcançar essas populações vulneráveis, aumentar sua adesão ao rastreamento e otimizar ao máximo o processo para que as lesões precursoras identificadas sejam tratadas adequadamente.
Referência:
Kirkegaard P; CBIG-SCREEN Consortium. What are the barriers towards cervical cancer screening for vulnerable women? A qualitative comparative analysis of stakeholder perspectives in seven European countries. BMJ Open. 2024 May 17;14(5):e079921. doi: 10.1136/bmjopen-2023-079921. PMID: 38760040.