A Lei dos 60 Dias (12.732/12), que garante ao paciente com câncer começar o tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) em, no máximo, 60 dias após o diagnóstico da doença, começou a vigorar em maio de 2013. Na prática, no entanto, a Lei ainda não está funcionando.
Um dos entraves é a exigência do Ministério da Saúde, que pretende que todos os registros de novos casos de câncer sejam feitos pelo Siscan - Sistema de Informação do Câncer - para obter um mapeamento da doença no País. O artigo 3º da Portaria nº 876/13 determina o início da contagem do prazo de 60 dias a partir da inscrição do diagnóstico no prontuário médico, e não após a assinatura do laudo patológico. “O Siscan ainda não está implementado na maioria dos municípios. É um sistema ideal, para inglês ver. Como a lei vai ser cumprida, como o usuário vai ter direito ao cumprimento da lei, se nem o registro é feito ainda?”, questiona a mastologista Maira Caleffi, presidente voluntária da Femama - Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama.
Segundo Maira, a ideia do Siscan é boa e importante mas, na prática, a sua implementação precisa ser aprimorada. Segundo o MS, 1.546 municípios utilizam atualmente o Siscan. Frente à totalidade dos municípios brasileiros (5.564) e ao tempo que a Lei está em vigor, a Femama avalia que é necessário maior agilidade na implementação da Lei. “Existem 573 mil casos de câncer no Brasil por ano. E eles apresentaram mil casos registrados no Siscan no último ano, dos quais 56% fizeram o atendimento em 60 dias. Essa é uma estatística que eles não deveriam nem mencionar como se estivesse funcionando”, diz Maira.
Ela acrescenta que a existência de portarias que regulamentam a lei provocam a falta de clareza sobre a norma e dificultam a implementação da Lei. “É muito frustrante para o médico, porque ele sabe o que é preciso fazer, sabe que o tempo é um aliado na cura, e esbarra em um processo muito burocrático e moroso. Um paciente com o diagnóstico na mão fica sem contar o prazo de 60 dias porque não conseguiu fazer o registro no sistema. Imagina como o médico se sente”, diz.
A boa notícia é que em uma Audiência Pública na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, em Brasília (DF), realizada para debater a aplicação da Lei neste primeiro ano, a coordenadora-geral de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas do Ministério da Saúde, Patrícia Sampaio Chueiri, concordou que esse artigo 3º representa um entrave e se comprometeu a tentar acelerar a sua exclusão da Portaria. “Provavelmente o artigo 3º da Portaria, que está causando a confusão sobre o registro do paciente, vai ser abolido. Enquanto o paciente não consegue a consulta, esse prazo ainda não está valendo, pode avançar indeterminadamente. Mas para nós o que vale é o diagnóstico. Nós queremos que valha a data do laudo, e não a data do registro”, alerta a presidente da Femama.
Pesquisa comprova que ainda há muito a ser feito
Durante a Audiência, a mastologista apresentou os dados preliminares de uma pesquisa inédita, ainda em andamento, encomendada pela Femama para compreender o cenário da implementação da Lei e comprovar com números que a Lei não está sendo cumprida. A pesquisa tem abrangência nacional e ouviu gestores estaduais de saúde, hospitais e centros de tratamentos de câncer do Sistema Único de Saúde (SUS). O retorno, no entanto, ainda não é dos mais animadores. Participam do estudo 59 instituições de todas as regiões do país, sendo que destas, 39% já responderam e 59% continuam avaliando as respostas. “Nós temos apenas 35% de respostas à entrevista. A maioria das secretarias não têm dados, e nem respondem ao telefone. Não existe uma transparência, a lei do acesso à informação também está sendo ferida”, lamenta a mastologista.
Os dados preliminares são alarmantes e revelam que há diversos pontos a melhorar na implementação da Lei dos 60 dias. Para 79% dos entrevistados, não houve repasse extra de recursos para a implementação da lei ou desconhecem esta informação. Sobre o Siscan, 33% dos respondentes mencionaram que ele estaria apenas parcialmente implementado e com problemas de funcionamento, e todos os entrevistados desconhecem uma data limite para o pleno funcionamento do sistema. Além disso, 25% dos participantes responderam que não foram treinados para utilizar o Siscan e 75% dos profissionais ouvidos pelo estudo desconhecem a existência de algum plano de ação para execução de todas as obrigações constantes da lei.
Maira explica que o Ministério da Saúde colocou o problema do câncer também na mão do Estado e do Município. Só que o município diz não ter recebido nenhum investimento junto com essas demandas, e não tem infraestrutura para conseguir atender todos esses pacientes. “Faltam profissionais, equipamentos de radioterapia, quimioterapia, não tem estrutura para agilizar tudo isso em 60 dias”, diz.
A pesquisa registrou uma dificuldade maior em realizar o tratamento com radioterapia, que está sendo iniciado em média após 100 dias. Além disso, apontou que a maioria das unidades básicas não têm acesso à internet, condição para o funcionamento do sistema de registro.
Pacientes devem exigir seus direitos
De acordo com Maira, a principal conclusão do estudo é que embora a publicação da lei tenha sido um passo muito importante para melhorar o acesso e acompanhamento de pacientes com câncer no SUS, a sua plena implementação ainda não foi concretizada. “Temos que continuar mobilizando a sociedade civil e o poder público para somar esforços no sentido de que a Lei dos 60 Dias funcione em todo o Brasil e para qualquer brasileiro”, conclui.
Muitos pacientes não sabem nem da existência de uma Lei que garante o atendimento em até 60 dias após o diagnóstico. Outros tantos não contestam porque não acreditam na lei ou não sabem como defender seus direitos. Nesse caso, a orientação é entrar desde o início com um requerimento junto ao Ministério Público, informando que já entrou com o pedido de consulta. “O paciente tem que ter essa ideia de tempo, que tempo custa vidas, que é preciso agilizar. Nós estamos em parceria com o Ministério Público. É a exigência de uma lei, e que faz muitas vítimas que estão deixando de ter acesso rápido e chance de cura”, finaliza.