Onconews - Prevenção e tratamento da xerostomia no tratamento do câncer

daniel cohen 2021Um painel multidisciplinar de especialistas avaliou a base de evidências (PubMed, EMBASE e Cochrane Library) para formular recomendações para a prevenção e tratamento da hipofunção das glândulas salivares e xerostomia induzidas por terapias não cirúrgicas no tratamento do câncer. As diretrizes atualizadas estão em artigo de Mercadante et al, no Journal of Clinical Oncology. Quem comenta o trabalho é o estomatologista Daniel Cohen Goldemberg (foto), pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (INCA).

Os pesquisadores consideraram ensaios clínicos randomizados publicados entre janeiro de 2009 e junho de 2020. A diretriz também incorporou duas revisões sistemáticas anteriores, que incluíram estudos publicados de 1990 a 2008.

Foram identificadas 58 publicações: 46 abordaram intervenções preventivas e 12 abordaram intervenções terapêuticas. A maioria das evidências enfocou o cenário da radioterapia no câncer de cabeça e pescoço. “Para a prevenção da hipofunção das glândulas salivares e / ou xerostomia em pacientes com câncer de cabeça e pescoço, há evidências de alta qualidade para as modalidades de radiação poupadoras de tecido”, descrevem os autores. “A evidência é mais fraca ou insuficiente para outras intervenções. Para o tratamento da hipofunção das glândulas salivares e/ou xerostomia, evidências de qualidade intermediária apoiam o uso de lubrificantes tópicos da mucosa, substitutos da saliva e agentes que estimulam o fluxo salivar”, prossegue o guideline.

A diretriz de conduta também considera o betanecol (evidência científica e força de recomendação baixas) para pacientes com câncer de cabeça e pescoço durante a radioterapia, assim como preconiza pilocarpina oral e cevimelina oral (evidência científica e força de recomendação altas), a acupuntura (evidência científica e força de recomendação moderadas) ou eletroestimulação transcutânea (evidência científica e força de recomendação baixas) após tratamento radioterápico.

As recomendações têm amparo da ASCO e da Multinational Association of Supportive Care in Cancer/International Society of Oral Oncology (MASCC/ISOO). 

Diretrizes reforçam importância da equipe odontológica no acompanhamento de pacientes com câncer

Por Daniel Cohen Goldemberg é estomatologista e patologista bucal, Honorary Oral Medicine Senior Lecturer – University College London (UCL), e pesquisador do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (COPQ-INCA)

O consenso publicado na Journal of Clinical Oncology aborda os principais aspectos relevantes em oncologia quando há abordagem não cirúrgica, e no que concerne a disfunção salivar destes pacientes, tanto sobre a sua prevenção, quanto tratamento, lembrando que devemos sempre avaliar os níveis de evidência e força de recomendação para cada medicamento ou procedimento recomendado1.

O uso de iodo radioativo, irradiação corporal total e quimioterapia de alta dose com transplante de células-tronco hematopoéticas, bem como quimioterapia de dose moderada para tumores sólidos também pode causar hipofunção da glândula salivar, em teoria, com perda de função e sintomas associados de menor gravidade e frequentemente menos duradouros. Provavelmente por conta disso, os pacientes oncológicos que são submetidos ao transplante de células-tronco hematopoiético foram pouco abordados neste artigo. No entanto, é importante lembrarmos que em pelo menos metade dos pacientes com doença do enxerto contra o hospedeiro crônica (DECHc), as manifestações orais são observadas, sendo uma destas manifestações justamente a disfunção das glândulas salivares.

A DECHc é a principal causa de morbidade e mortalidade, que não a recidiva, após os transplantes de células-tronco alogênicos2. Da mesma forma que os autores do consenso traçaram um paralelo com a Síndrome de Sjögren (SS) para facilitar até mesmo uma abordagem científica no sentido de sugerir melhorias na área de pesquisa que concerne o manejo da hipossalivação/xerostomia em pacientes oncológicos, o mesmo pode ser feito também com os pacientes com DECHc.

Nagler e Nagler há 15 anos publicaram uma revisão realizando justamente esta abordagem de comparação com SS e se aprofundando na patogênese da disfunção das glândulas salivares nos pacientes com DECH, e a abordagem terapêutica parece ser mais eficaz com o uso de pilocarpina3, no entanto, mais ensaios clínicos de qualidade são necessários para uma melhor definição quanto à terapêutica ideal. Um position paper da mesma ISOO/MASCC juntamente com a European Society for Blood and Marrow Transplantation (EBMT) foi publicado há 6 anos e é uma leitura recomendada sobre o tema sobre cuidados orais em pacientes submetidos a transplante de células tronco hematopoiéticas4.

O manejo da hipossalivação observada tanto nos casos de pacientes com SS, quanto nos pacientes submetidos à radioterapia (muitas vezes resultando em xerostomia permanente em decorrência da grande destruição acinar que afeta de forma drástica a qualidade de vida do paciente) pode se beneficiar de avanços tecnológicos recentes. Já existem diversos estudos envolvendo terapia genética, terapia com células-tronco e inclusive a engenharia de tecidos através de bioengenharia que futuramente podem ser aplicados para desenvolvimento do parênquima das glândulas salivares contendo também seu estroma de sustentação, mimetizando o desenvolvimento embrionário destes tecidos5.

É evidente que lidar com a redução do fluxo salivar com o advento destas novas tecnologias ainda não é viável nos dias de hoje. Além disso, mais ensaios clínicos randomizados e controlados são necessários para conseguirmos uma melhor definição quanto a outros métodos com evidência científica para seu uso, principalmente quanto à prevenção (ainda mais escassos1), mas também quanto ao tratamento da disfunção das glândulas salivares. Enquanto isso, o mais importante dentro deste contexto, especialmente dos pacientes abordados no artigo comentado, submetidos à radioterapia de cabeça e pescoço, é a presença de uma equipe odontológica que inclua profissionais habilitados em odontologia hospitalar e especialistas em estomatologia, de forma que uma avaliação odontológica seja realizada antes do tratamento radioterápico para minimizar as suas potenciais manifestações orais, visto que a xerostomia é inclusive uma das potenciais toxicidades agudas deste tipo de tratamento.

Estes pacientes também devem ser acompanhados por esta equipe odontológica durante o tratamento e a longo prazo, com especial atenção para o risco de cáries dentárias por radiação, osteoradionecrose e identificação de potenciais lesões que podem representar recorrências6 ou novos tumores primários, levando em conta o princípio de cancerização de campo, caso a neoplasia primária tenha se originado em cavidade oral.

Referências:

1 - Mercadante V, Jensen SB, Smith DK, et al. Salivary Gland Hypofunction and/or Xerostomia Induced by Nonsurgical Cancer Therapies: ISOO/MASCC/ASCO Guideline. J Clin Oncol. 2021;39(25):2825-2843. doi:10.1200/JCO.21.01208

2 - Bassim CW, Fassil H, Mays JW, et al. Oral disease profiles in chronic graft versus host disease. J Dent Res. 2015;94(4):547-554. doi:10.1177/0022034515570942


3 - Nagler RM, Nagler A. Salivary gland involvement in graft-versus-host disease: the underlying mechanism and implicated treatment. Isr Med Assoc J. 2004;6(3):167-172.

4 - Elad S, Raber-Durlacher JE, Brennan MT, et al. Basic oral care for hematology-oncology patients and hematopoietic stem cell transplantation recipients: a position paper from the joint task force of the Multinational Association of Supportive Care in Cancer/International Society of Oral Oncology (MASCC/ISOO) and the European Society for Blood and Marrow Transplantation (EBMT). Support Care Cancer. 2015;23(1):223-236. doi:10.1007/s00520-014-2378-x

5 - Quock RL. Xerostomia: current streams of investigation. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol. 2016;122(1):53-60. doi:10.1016/j.oooo.2016.03.002

6 - Alves L.D.B., Menezes A.C.S., Costa A.M.D., Heimlich F.V., Goldemberg D.C., Antunes H.S. (2021). Strategies for the dentist management of cancer patients: narrative literature review. J Cancer Prev Curr Res;12(4):111‒121. doi: 10.15406/jcpcr.2021.12.00463