No tratamento do câncer de colo de útero localmente avançado, a adição de quimioterapia neoadjuvante com cisplatina e gemcitabina à quimiorradioterapia padrão não é superior, e possivelmente inferior, à quimiorradioterapia isolada. Os resultados do estudo brasileiro liderado pela oncologista Samantha Cabaral da Costa (foto), médica do ICESP e do Hospital Santa Catarina e membro do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG) foram publicados no Journal of Clinical Oncology (JCO).
Embora quimiorradiação (CRT) com cisplatina continue sendo o tratamento padrão em pacientes com câncer cervical localmente avançado (LACC), 40% dos pacientes apresentam recorrência da doença, o que faz com sejam necessárias estratégias de tratamento adicionais para melhorar os resultados.
Métodos e resultados
Neste estudo de fase II, pesquisadores brasileiros buscaram avaliar a eficácia e a segurança da quimioterapia neoadjuvante (NAC) com cisplatina e gemcitabina, seguida por quimioradioterapia em pacientes com LACC (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia estádio IIB a IVA ou com linfonodos positivos).
O estudo inscreveu 107 pacientes, randomizadas para três ciclos de quimioterapia neoadjuvante com cisplatina e gemcitabina, seguidos por CRT padrão com cisplatina semanal mais radioterapia pélvica (braço NAC, n=55); ou para CRT padrão isolada (braço CRT, n=52). A maioria das pacientes apresentava carcinoma espinocelular (87,8%). O endpoint primário foi a sobrevida livre de progressão em 3 anos (SLP). Os endpoints secundários foram taxa de resposta, controle locorregional em três anos, sobrevida global em três anos (SG), segurança e qualidade de vida.
Após um acompanhamento médio de 31,7 meses, o NAC foi associado a uma sobrevida livre de progressão inferior, com taxas de SLP em três anos de 40,9% vs 60,4% no braço da CRT (hazard ratio 1,84; 95% IC, 1,04 a 3,26; P = 0.033). A NAC também foi associada a uma pior sobrevida global (taxa de SG em 3 anos, 60,7% vs 86,8%; hazard ratio 2,79; 95% IC, 1,29 a 6,01; P = 0,006). Após a conclusão do tratamento, as taxas de resposta completa foram 56,3% no grupo NAC e 80,3% no grupo CRT (P = 0,008). As toxicidades foram semelhantes nos dois braços, com exceção da hipomagnesemia e neuropatia, que foram mais comuns com a NAC.
Estudo reforça necessidade de ampliar o acesso precoce à radioterapia
Por Samantha Cabral
Apesar de todas as políticas de prevenção e rastreamento, o câncer de colo de útero ainda é um grande desafio em países em desenvolvimento. No Brasil é a 3ª neoplasia maligna mais comum em mulheres. Infelizmente, grande parte dos diagnósticos ocorre já com doença localmente avançada na pelve, em que o tratamento padrão é quimiorradioterapia baseada em cisplatina.
Há oito anos, impulsionados pela dúvida do papel da quimioterapia neoadjuvante nesse cenário e buscando aumentar as taxas de cura dessas pacientes, que em algumas regiões não conseguem acesso precoce ao tratamento radioterápico pela escassez de recursos, iniciamos o estudo CIRCE, um estudo de fase II, randomizado, conduzido pela equipe de oncologia clínica ginecológica do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).
107 pacientes foram randomizadas em 2 grupos de tratamento. Um grupo recebeu 3 ciclos de quimioterapia neoadjuvante (QTN) com cisplatina e gencitabina seguido de QTRT padrão e o outro grupo recebeu o tratamento padrão. Publicado no Journal of Clinical Oncology em agosto de 2019, o estudo mostrou que o grupo que realizou QTN teve menor sobrevida livre de progressão em 3 anos em comparação ao grupo QTRT (40,9% vs 60,4%, P:0,033) e menor sobrevida global (SG em 3 anos 60,7% vs 86,8%, P:0,006). Ao longo do seguimento, a taxa de resposta completa foi maior no braço de QRT padrão em comparação ao braço de QTN, 80,3% vs 56,3%, respectivamente (P:0,008).
As possíveis justificativas para esses resultadores desapontadores são incertas, mas acreditamos que a toxicidade associada à QTN pode ter resultado em uma menor tolerância da paciente em receber quimioterapia concomitante à RT externa, considerando que no braço QTN um número maior de pacientes descontinuaram a quimioterapia durante a RT (20% vs 5,8%). Também é possível que a QTN tenha induzido alterações celulares e no microambiente tumoral resultando em uma maior radiorresistência.
Portanto, até a finalização e publicação dos resultados do estudo de fase III em andamento (INTERLACE), o tratamento padrão do câncer de colo de útero localmente avançado ainda é QTRT com cisplatina. O estudo CIRCE reforça a importância da radioterapia no tratamento dessa doença e a necessidade de ampliar o acesso precoce ao tratamento radioterápico.
Referência: Neoadjuvant Chemotherapy With Cisplatin and Gemcitabine Followed by Chemoradiation Versus Chemoradiation for Locally Advanced Cervical Cancer: A Randomized Phase II Trial - Samantha Cabral S. da Costa et al - https://doi.org/10.1200/JCO.19.00674