Artigo de Richman et al. no Annals of Internal Medicine mostra que o sobrediagnóstico (overdiagnosis) é cada vez mais reconhecido como um dano do rastreamento do câncer de mama em mulheres idosas. Richman e colegas compararam o diagnóstico de câncer de mama e de morte em uma população rastreada de mulheres dos EUA com idade entre 70 e 85 anos com uma população não rastreada da mesma idade. Os resultados estimam que 31% das mulheres entre 70 e 74 anos diagnosticadas com câncer de mama em programas de rastreamento foram potencialmente sobrediagnosticadas, enquanto para mulheres de 75 a 84 anos, o sobrediagnóstico foi estimado em 47%. Ricardo Caponero (foto), oncologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, comenta os resultados.
Neste estudo de coorte retrospectivo, o objetivo dos pesquisadores foi avaliar a incidência cumulativa de câncer de mama entre mulheres mais velhas (≥ 70 anos) que continuaram o rastreamento na comparação com aquelas que não realizaram a triagem. As análises usaram modelos de risco concorrentes, estratificados por idade.
A partir de dados do registro SEER-Medicare, o estudo incluiu 54 635 mulheres. Entre aquelas de 70 a 74 anos, a mediana de acompanhamento foi de 13,7 anos e a incidência cumulativa de câncer de mama foi de 6,1 casos (95% CI, 5,7 a 6,4) por 100 mulheres rastreadas versus 4,2 casos (IC, 3,5 a 5,0) por 100 mulheres não rastreadas. “Estima-se que 31% dos casos de câncer de mama entre as mulheres rastreadas foram potencialmente sobrediagnosticados”, descreve a análise.
Para mulheres de 75 a 84 anos, o seguimento mediano foi de 10 anos e a incidência cumulativa foi de 4,9 (IC, 4,6 a 5,2) por 100 mulheres rastreadas versus 2,6 (IC, 2,2 a 3,0) por 100 mulheres não rastreadas, com 47% dos casos potencialmente sobrediagnosticados. Para mulheres com 85 anos ou mais, a mediana de acompanhamento foi de 5,7 anos e a análise ajustada mostrou incidência cumulativa de 2,8 (IC, 2,3 a 3,4) entre as mulheres rastreadas versus 1,3 (IC, 0,9 a 1,9) entre as não rastreadas, com até 54% de sobrediagnóstico.
A análise mostra que não foram observadas reduções estatisticamente significativas na morte específica por câncer de mama associada ao rastreamento. O rastreamento contínuo do câncer de mama foi associado a maior incidência de câncer de mama, sugerindo que o sobrediagnóstico pode ser frequente entre mulheres mais velhas diagnosticadas com câncer de mama após o rastreamento.
Para o oncologista Ricardo Caponero, o artigo da Dra. Ilana B. Richman é de fundamental importância, mas precisa ser interpretado com cuidado. “O sobre diagnóstico é o que se realiza numa paciente que morrerá por uma causa distinta da que se está rastreando. É claro que a idade é o principal fator de risco para a morte. Pessoas mais velhas têm mais chances de morrer. Indo ao extremo, com certeza nenhum exame de rastreamento vale a pena aos 100 anos de idade. O problema está exatamente em saber qual é a causa de morte mais provável em uma determinada faixa etária”, pondera. “O estudo incluiu 54.635 mulheres, e a incidência de câncer de mama entre 70 a 74 anos foi de 6,1casos/100.000 mulheres rastreadas (sem sintomas). Essa taxa foi de 4.2/100.000 na faixa dos 75 a 84 anos e 2,8/100.000 para as mulheres com 85 anos ou mais. Obviamente a taxa de incidência cai em função da mortalidade por outras causas”, acrescenta.
Caponero observa que um rastreamento efetivo precisa permitir o diagnóstico numa fase da doença em que se melhorem as opções terapêuticas e se aumente a chance de cura, mas por outro lado, o diagnóstico aumenta o estresse das pacientes e pode aumentar os custos em saúde. “O importante é não generalizar os resultados para as mulheres em geral. A idade cronológica deve ser interpretada conjuntamente com a idade biológica e potenciais doenças concomitantes. Pode haver benefício com o rastreamento de uma paciente de 85 anos e saudável ("fit") e não haver para uma de 65 anos, diabética, hipertensa, obesa e fumante”, diz.
O especialista destaca ainda que esses dados respaldam a recomendação institucional do Ministério da Saúde do Brasil para interromper o rastreamento aos 70 anos de idade, como um programa estatal, e pondera que em termos econômicos, hábitos de vida saudáveis, de custo muito baixo, podem reduzir a incidência (melhor que diagnóstico precoce) em 13% e poupar mais de R$100 milhões no SUS.
“Como tudo na medicina, os dados devem ser interpretados de forma individual e as opções discutidas com as pacientes. O importante não é o resultado do exame, mas o que se vai fazer com ele. O sobrediagnóstico, embora lesivo do ponto de vista psicológico, só é problemático se ele levar a um sobretratamento, a um procedimento fútil. Ou seja, se não se vai tratar, não se precisa diagnosticar”, conclui.
Referência: Ilana B. Richman, Jessica B. Long, Pamela R. Soulos, et al. Estimating Breast Cancer Overdiagnosis After Screening Mammography Among Older Women in the United States. Ann Intern Med. [Epub 8 August 2023]. doi:10.7326/M23-0133