A eficácia e efetividade da vacina quadrivalente contra o papilomavírus humano (HPV) na prevenção de lesões cervicais de alto grau já foram amplamente demonstradas, mas faltavam evidências sólidas sobre a relação entre a vacinação e o risco subsequente de câncer cervical invasivo. Agora, um grande estudo sueco publicado em 1º de outubro de 2020 no New England Journal of Medicine confirmou que a vacinação reduziu substancialmente o risco da doença em nível populacional. “Esse estudo aponta para uma redução impressionante de 88% no risco de desenvolver câncer de colo do útero invasivo nas jovens vacinadas quando comparadas com as não vacinadas”, afirma a bióloga Luisa Lina Villa (foto), referência em pesquisa do HPV.
Os pesquisadores utilizaram registros demográficos e de saúde suecos para acompanhar uma população de 1.672.983 meninas e mulheres que tinham de 10 a 30 anos de idade de 2006, ano de aprovação da vacina contra o HPV no país, e 2017. Foram avaliadas a associação entre a vacinação contra o HPV e o risco de câncer do colo do útero invasivo, controlando para idade no follow up, ano calendário, município de residência e características dos pais, incluindo escolaridade, renda familiar, país de nascimento da mãe e história de doença materna.
Resultados
Durante o período do estudo, foram avaliadas para câncer do colo do útero meninas e mulheres até o 31º aniversário. O câncer foi diagnosticado em 19 mulheres que receberam a vacina quadrivalente contra o HPV e em 538 mulheres que não receberam a vacina. A incidência cumulativa da doença foi de 47 casos por 100 mil pessoas entre as mulheres vacinadas e 94 casos por 100 mil pessoas entre aquelas não vacinadas. Após ajuste por idade no acompanhamento, a razão da taxa de incidência para a comparação da população vacinada com a população não vacinada foi de 0,51 (95% CI, 0,32 a 0,82).
Considerando ajuste adicional para outras covariáveis, a razão da taxa de incidência foi de 0,37 (95% CI, 0,21 a 0,57), e após o ajuste para todas as covariáveis, a razão da taxa de incidência foi de 0,12 (95% CI, 0,00 a 0,34) entre as mulheres que foram vacinadas antes dos 17 anos e 0,47 (95% CI, 0,27 a 0,75) entre as mulheres vacinadas entre 17 e 30 anos de idade.
“O estudo reafirma que a vacinação contra o HPV confere proteção contra o câncer cervical e que a vacinação em idade jovem é importante para uma melhor proteção, com uma redução de risco de 88% em mulheres vacinadas antes dos 17 anos”, concluíram os autores.
No Brasil, a vacinação é oferecida pelo Ministério da Saúde a meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos, além de pessoas entre 9 e 26 anos vivendo com HIV/Aids e outras condições imunossupressoras como pacientes transplantados e em tratamento por câncer.
O trabalho foi financiado pela Swedish Foundation for Strategic Research.
Resultados permitem vislumbrar a redução significativa de câncer de colo do útero nas próximas décadas
Por Luisa Lina Villa, pesquisadora do Departamento de Radiologia e Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP)
Esse estudo aponta para uma redução impressionante de 88% do risco de desenvolver câncer de colo do útero invasivo nas jovens vacinadas quando comparadas com as não vacinadas, em um período de 11 anos desde a implementação de vacinas profiláticas de HPV na Suécia.
Trata-se de uma avaliação em base populacional e, portanto, menos sujeita a vieses de diferentes ordens e graus. Anteriormente, dois estudos realizados na Finlandia2 e nos Estados Unidos da América3, já apontavam para uma redução de número de casos de câncer de colo do útero entre jovens mulheres vacinadas contra o HPV quando comparadas com as não vacinadas. No entanto, o presente artigo de Lei e colaboradores é o primeiro a mostrar uma análise em base populacional, envolvendo grande número de indivíduos e reduzindo o risco de vieses que poderiam conduzir a conclusões dúbias. Ao contrário, os resultados são extremamente positivos e permitem vislumbrar a redução significativa de câncer de colo do útero nas próximas décadas, principalmente entre países que mantenham elevadas taxas de cobertura da vacinação contra HPV.
No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, muitos pesquisadores em diversos países do mundo, inclusive no Brasil, se dedicaram a realizar ensaios clínicos para determinar a segurança e eficácia das vacinas profiláticas de VLPs de HPVs. Naquela época, apesar dos resultados muito positivos dos ensaios clínicos realizados em milhares de mulheres e homens em diversos países, podia-se apenas antever que a intervenção reduziria o risco de doenças causadas pelos tipos de HPV contidos nessas vacinas, destacando-se o potencial de reduzir a incidência de câncer invasivo. Os resultados publicados por Lei e colaboradores há poucos dias vem a confirmar, de forma contundente, as expectativas teóricas. Mais ainda, como já reportado anteriormente, a efetividade dessa ação é maior quando as vacinas profiláticas de HPV são administradas em mulheres mais jovens, em total consonância com o modo principal de transmissão por via sexual desses vírus.
Finalmente, há que considerar que a redução das taxas de câncer de colo do útero deverá impactar os programas de rastreamento desse tumor4. Com a perda do valor preditivo positivo do rastreamento baseado em alterações citológicas (teste de papanicolaou), o screening ideal deverá ser feito com testes de HPV. Nada disso, entretanto, será efetivo se não houver comunicação adequada e informação precisa tanto a nível da população em geral, quanto dos profissionais de saúde e de todos os envolvidos social e politicamente na área da saúde.
Referências:
1 - HPV Vaccination and the Risk of Invasive Cervical Cancer - Jiayao Lei, Ph.D., Pär Sparén, Ph.D. et al - October 1, 2020 - N Engl J Med 2020; 383:1340-1348 - DOI: 10.1056/NEJMoa1917338
2 - Luostarinen et al., Int J Cancer, 2017
3 - Guo et al., Am J Prev Med, 2018
4 - Lei et al., Br J Cancer, 2020